Disputar uma Olimpíada é um dos objetivos mais almejados de todo atleta que pratica um esporte olímpico. É o verdadeiro ápice da profissão. No entanto, alcançar esse sonho demanda de muito esforço e paixão. Para o bento-gonçalvense Marcus Vinícius Freire, o desejo de conquistar uma vaga na maior competição esportiva do mundo se sobressaiu à vontade do pai, que queria o ver formado em engenharia. O resultado de sua insistência foi muito além da medalha de prata em Los Angeles, em 1984.
Marcus, de 57 anos, fez parte da história vitoriosa do voleibol brasileiro e, sobretudo, construiu seu legado no esporte olímpico ao longo de 13 edições de Olimpíadas, somando as de verão, inverno e da juventude, como Chefe da Missão e Diretor Executivo do Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Na semana em que se comemorou o Dia do Esporte Olímpico, na terça-feira, 23, e o Dia Mundial do Vôlei, no sábado, 27, o NB traz uma reportagem especial para contar a trajetória do primeiro e único atleta bento-gonçalvense medalhista olímpico da história.
O início de um sonho
Em 1962, a família se encontrava em Bento Gonçalves. O seu pai atuava na construção do 1º Batalhão Ferroviário quando Marcus nasceu. Ainda criança, ele e sua família se mudaram para o Rio de Janeiro. Lá, o bento-gonçalvense iniciou no vôlei nas equipes mirins do Flamengo e do Botafogo, posteriormente retornando para o Rio Grande do Sul para integrar a Sogipa, de Porto Alegre, ao mesmo passo em que cursava engenharia.
No entanto, Marcus logo retornou ao Rio para fazer parte do elenco da primeira equipe profissional de vôlei do Brasil, a Atlântica Boavista. A sua volta para a cidade maravilhosa para trilhar carreira nas quadras só foi aceita pelo pai com duas condições: Marcus tinha que continuar estudando e todo o dinheiro que ganhava ao jogar vôlei precisava ser depositado na conta do pai “para evitar folia”, como descreve Marcus.
Medalha olímpica pertencente ao bento-gonçalvense
Em 1981, Marcus começava a sua trajetória vitoriosa pela Seleção Brasileira de Voleibol. “Naquele ano fomos vice-campeões do Mundial Juvenil. No final do ano fui convocado para a Seleção Brasileira Adulta e fomos medalha de bronze, primeira medalha da história do vôlei, na Copa do Mundo do Japão”, relata.
Com 18 anos, o bento-gonçalvense já frequentava os mesmos espaços que grandes ídolos do voleibol. “Lembro na Copa do Mundo de 1981, no primeiro dia, café da manhã, eu sentado de frente para a porta. Naquela época não tinha youtube, jogos na televisão não passava quase que nenhum. Conheci os jogadores dos outros times, da Rússia, do Japão, por uma revista internacional. E daí esses caras da revista começavam a entrar pela porta e eu pensava: ‘cara, o cara da revista é aquele ali’. Tinha uma distância entre um ídolo que vai ser teu adversário e um respeito exagerado”, explica Marcus.
Com Bebeto de Freitas no comando, um dos percursores do voleibol brasileiro, e que posteriormente se tornaria presidente do Botafogo, a Seleção Brasileira foi adquirindo bagagem através de experiências internacionais, enfrentando as mais diversas escolas do vôlei pelo mundo.
A Geração de Prata
A Geração de Prata fez história no voleibol. A partir dela, o nível do voleibol brasileiro alcançou novos patamares, sobretudo com a formação de diversos treinadores renomados, e que entraram para a história da modalidade, a começar por Bebeto de Freitas. No período entre 1981 e 1984, Marcus conquistou com a seleção, além do bronze na Copa do Mundo em 1981, o ouro no Pan-Americano de 1983, em Caracas, na Venezuela e, posteriormente, a medalha de prata nas Olimpíadas de 1984, a primeira medalha olímpica conquistada pelo Brasil no voleibol.
Segundo Marcus, houve quatro pilares fundamentais que tornaram a Geração de Prata de grande valia para a história do voleibol. A primeira, a profissionalização da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), que era comandada por Carlos Arthur Nuzman; a segunda, os patrocinadores; a terceira, a divulgação do esporte por na televisão através de Luciano do Valle, que foi narrador da Rede Bandeirantes; e a quarta, a geração de jogadores, com grandes nomes como Bernard, Renan, William e Xandó, comandados por Bebeto de Freitas.
Marcus, no centro, no gramado do Los Angeles Memorial Coliseum/ Foto: Arquivo Pessoal/Marcus Vinícius Freire
O treinador, como relata Marcus, foi o principal responsável por construir a geração que fez história no início da década de 1980, e que antecedeu outras gerações que construíram a trajetória vitoriosa do voleibol brasileiro. “O Vôlei começou olímpico em 1964, em Tóquio, e tinha uma escola asiática que mandava no vôlei: China, Japão e Coréia, uma escola de velocidade e muita habilidade. Logo depois já é uma escola russa, antiga cortina de ferro: Rússia, Iugoslávia, esses times tinham um jogo de muita força e times muito altos. O Bebeto conseguiu fazer um mix desses dois. Esse mix foi que deu a criação dessa escola brasileira de vôlei”, explica.
Dali em diante, o Brasil se tornou uma verdadeira fábrica de treinadores. “Formamos uma escola de treinadores, isso é muito importante, pois jogadores entram e saem. Jogador tem uma vida curta, para a nossa tristeza, mas o treinador vai formando gerações, uma vai transitando com a outra, vai transferindo conhecimento ou experiências”, comenta Marcus.
Nas Olimpíadas de 1984, em Los Angeles, a Seleção Brasileira de Voleibol contava com Bernard, Renan (atual técnico da Seleção), William, Fernandão, Amauri, Montanaro, Xandó, Badá, Bernardinho, Domingos Maracanã, Léo, além de Marcus.
Da esq. para dir: Paulo Sérgio Rocha (preparador físico), Jorjão (auxiliar), Bernard, Leo (cortado antes dos Jogos), Fernandão, Rui Campos, Xandó, Maracanã, Amauri, Bebeto de Freitas (técnico) e Brunoro; sentados: Matias (massagista), Marcus Vinícius, Montanaro, Bernardinho, Renan, William, Ronaldão (cortado), Cacau (cortado) e Badá
Na primeira fase, após perder para a Coreia do Sul, o Brasil precisava vencer os Estados Unidos por 3 sets a 0 para avançar. Os EUA, que já estavam classificados, entraram em quadra com os reservas. O Brasil, com os titulares, mostrou o que tinha de melhor para fazer em quadra, e venceu justamente pelo placar que necessitava para ir aos playoffs.
Na final, a Seleção Brasileira se reencontrou com os americanos, porém, desta vez, diante do time titular dos donos da casa. “Eles já conheciam todas as nossas jogadas, se prepararam muito melhor para a final, e nós, do normal do latino, ‘ganhamos de 3 a 0, agora vai ser outro 3 a 0, agora vamos dar na cara na casa dos caras’. Foi o que aconteceu, duas sensações diferentes se encontraram, a gente brinca que não deu tempo nem de respirar”, relata.
A transição de dentro para fora das quadras
Com 28 anos, após atuar três anos na Itália, Marcus deixou de lado as quadras devido às lesões. A transição, no entanto, teve um impacto menos expressivo pelo fato de o atleta contar com a sua formação em economia. “É muito difícil essa transição de carreira do atleta. É muito difícil para a cabeça, principalmente. Estou na Itália, único estrangeiro do meu time, era o dono da cidade e você volta para o Rio para trabalhar numa corretora de valores, arrumar outra profissão, pois essa aí acabou da noite para o dia”, ressalta.
Ao contrário de alguns colegas de equipe, que seguiram carreira como treinadores, Marcus migrou para o mercado financeiro. Porém logo voltou a ter contato com o voleibol através de um convite de Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do COB. “Em 1999 o Nuzman me convidou para ser Chefe da Missão do Brasil voluntário no Pan-Americano. E então fiz uma carreira como voluntário. Eu tirava férias para ir trabalhar com o COB de graça, e isso durou 10 anos, e estive em 13 olimpíadas (verão, inverno e da juventude) trabalhando, sendo que joguei uma”, explica.
Foto: Francisco Medeiros/ME
Posteriormente, após o Brasil ganhar o direito de receber os Jogos Olímpicos de 2016, Marcus se tornou Diretor Executivo do COB a partir de 2009. “Aceitei o convite para planejar e preparar todas as 42 modalidades, todo aquele planejamento do 'Time Brasil', da contratação de treinadores estrangeiros, investimento em ciência, montagem toda do desenho do que íamos apresentar, da melhor atuação do Brasil, pois foi o nosso melhor resultado da história, mesmo um pouco abaixo da meta do que tínhamos eu e minha equipe projetado”, relata.
Em 2016, Marcus retornou a Bento Gonçalves para vivenciar um dos momentos mais emblemáticos de sua vida. Nas ruas do município da Serra Gaúcha, ele voltou às origens para desfilar com a Tocha das Olimpíadas Rio 2016, evento no qual esteve na linha de frente e que auxiliou na conquista do melhor resultado da história do Brasil em Jogos Olímpicos.
O desafio de ser um Chefe da Missão em Olimpíadas
A experiência ao longo dos anos auxiliou Marcus a encarar a missão de estar na linha de frente das Olimpíadas no Brasil, em 2016. Porém, ao contrário do pejorativo criado pelo futebol sobre o que é um “Chefe da Missão”, no Comitê Olímpico Brasileiro, por sua vez, o seu dever corresponde a uma responsabilidade sem tamanho.
Marcus descreve assim o papel de um “Chefe da Missão”: “Você já foi na Disney, com sua mulher, sua sogra, dois filhos, um amigo do filho e uma babá? Lembra o que aconteceu? Um queria ir no parque, outro queria dormir, um queria comer cachorro quente, outro queria comer massa, um queria ir de carro, outro queria ir de ônibus, um queria ficar dentro do parque, outro queria ficar dentro da água. É exatamente igual, mas com 700 pessoas. É exatamente a confusão da Disney. Para piorar você coloca nisso cavalos, barcos, caiaque, armas de tiro. Para piorar mais ainda você tem o evento na China, outro na Austrália, então você tem que mandar uma parte de navio antes, tem que chegar lá antes”, comenta.
Diante de uma tarefa tão importante em suas mãos, Marcus utilizou, em linhas gerais, algumas medidas para tornar o trabalho mais efetivo. “É uma operação que me preparei executivamente, sem pensar nela, a vida inteira. Se o problema é muito grande e é muito importante ele tem que ser o primeiro. Você tem que ter um mapa de risco para prever, e a vantagem é que eu já tinha ido para 12 Olimpíadas, então fazer a Olimpíada do Rio como a 13ª, eu peguei toda a bagagem, eu e minha equipe”, pondera.
O segredo principal, no entanto, é o trabalho coletivo, como detalha Marcus: “Venho de um esporte coletivo, e só sei trabalhar em equipe, não sei trabalhar sozinho. Como é que você cuidou da preparação de mil atletas, de 42 modalidades no Rio se você não é formado em Educação Física, você não é treinador, não é preparador físico? Mas você não precisa disso. A pessoa que está gerenciando precisa montar um bom time, com especialistas em cada área, e planejar junto com alguém de processo o que cada área dessas tem que fazer a cada momento”, explica.
A prevenção e previsão de problemas para solucioná-los da melhor forma são alguns dos assuntos tratados por Marcus em seu livro “Resolva”. O atleta bento-gonçalvense também conta a história do marketing das Olimpíadas na obra “Ouro Olímpico”, autor ao lado da escritora e jornalista Déborah Ribeiro.
Após integrar o COB durante 18 anos, Marcus deixou o comitê em 2016. Um ano depois, foi diretor executivo do Fluminense, em 2017 e 2018. Atualmente, Marcus é investidor em Startups de Tecnologia e sócio da empresa de curadoria de conteúdos digitais Play9, ao lado do youtuber Felipe Neto e do ex-diretor executivo da Central Globo de Esportes, João Pedro Leme.
Os impactos do coronavírus às Olimpíadas de Tóquio na visão do ex-Diretor Executivo do COB
Além dos impactos financeiros, a pandemia afetou o planejamento de inúmeros atletas, desde os que já conquistaram vaga às Olimpíadas até os que ainda estão trilhando o caminho para alcançar tal objetivo. Para Marcus, a Olimpíada de Tóquio 2021 será a de pior resultado da história em termos de desempenho e performance, e ainda observa alguma possibilidade de os jogos não ocorrerem.
O ex-diretor executivo do COB salienta que os impactos afetam, sobretudo, na periodização de treinamento daqueles que já estão garantidos nas Olimpíadas. “O primeiro impacto é para todos os 205 países. Eu acho que vai ser a Olimpíada de pior resultado da história, pois você quebrar três meses de treinamento de qualquer atleta é o mesmo que você quebrar a perna e ter que arrumar tudo de novo”, resume.
Foto: Gustavo Sthepan
Para os atletas que ainda não se classificaram, o desafio de superar as dificuldades impostas pela pandemia será ainda maior. “Os que não estão classificados ainda vão ter uma agenda louca, pois você vai ter que classificar, de janeiro até maio, para os jogos serem em julho, então você vai ter campeonato atrás de campeonato e ninguém vai treinar. Não treinando, possivelmente o resultado na Olimpíada vai ser o pior da história em relação à quebra de recordes e números”, avalia Marcus.
Um apelo para Bento Gonçalves
O exemplo de Marcus, tanto como um atleta de alto-rendimento como um executivo notável, sobretudo no ramo esportivo, transparece o fato de não haver barreiras para alcançar seus objetivos. “Dá para sair de uma cidade pequena do interior do país para virar um medalhista olímpico ou para virar um executivo do que for, do banco, do esporte. O seu destino é o que você desenhar”, pondera.
Aos políticos e empresários do município, o bento-gonçalvense faz um apelo para que o investimento no esporte seja valorizado, desta forma vislumbrando, num futuro próximo, um novo medalhista olímpico da cidade. “Por favor, me ajudem a arrumar um novo medalhista olímpico na cidade de Bento Gonçalves. Vamos ajudar a montar um projeto para que não seja só eu todo ano o único medalhista olímpico de Bento. Pode ser em Tóquio, em Paris, em 2024, ou pode ser em Los Angeles. O meu foi em Los Angeles em 1984, que seja Los Angeles em 2028. Tem oito ano para tornar um novo bento-gonçalvense medalhista”, afirma.
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