A regulamentação da reforma tributária, prevista no Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024 , da forma como está, pode trazer prejuízos ao contribuinte. A conclusão é dos especialistas convidados para a audiência pública promovida nesta terça-feira (20) pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) . Nessa audiência, que faz parte de uma série de debates, os convidados discutiram restrições no texto consideradas indevidas por alguns setores.
A reforma tributária foi promulgada em dezembro de 2023, como Emenda Constitucional 132 , e agora a sua regulamentação está em discussão no Senado. O debate desta terça-feira faz parte do plano de atividades do grupo de trabalho que analisa essa regulamentação, coordenado pelo senador Izalci Lucas (PL-DF). O plano, aprovado no início de agosto, prevê um total de 11 audiências públicas até a apresentação do relatório final, prevista para 22 de outubro.
— A gente precisa ter pé no chão para não apressar as coisas. "O apressado come cru", então tem de ter muito cuidado — disse Izalci ao sugerir uma discussão ampla e profunda da regulamentação.
Um dos objetivos da reforma era implementar um sistema sem impostos em cascata, ou seja, sem a incidência de um tributo sobre o outro. Alguns especialistas, no entanto, dizem que há, no texto da regulamentação, brechas para que a não-cumulatividade plena deixe de ocorrer. Um deles é a obrigação de comprovação do recolhimento de tributos de etapas anteriores para que o contribuinte possa ter os créditos de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tributos instituídos pela reforma tributária.
— Quando o elo anterior não paga, ele não vai ser perdoado, não vai haver remissão da dívida. O Fisco vai continuar cobrando dele. Só que o elo seguinte já teve de pagar o imposto mais alto porque não usou o crédito. E o Fisco, depois de seis meses, de dois anos, de cinco anos, quando finalmente receber aquele tributo, vai receber o tributo sobre o qual o outro elo não se creditou e já pagou. Então o Fisco vai receber duas vezes. Vai haver uma evidente acumulação — criticou o advogado Hugo de Brito Machado Segundo, professor da Universidade Federal do Ceará.
Para Mary Elbe Queiroz, pós-doutora em Direito Tributário, condicionar a geração de créditos ao pagamento afeta o fluxo de caixa das empresas, gera o acúmulo de créditos das empresas com o fisco sem prazo de devolução e retira valores que deveriam estar circulando na economia.
— A nossa reforma tributária tinha como princípio simplicidade e cooperação. Não se pode jogar novamente toda a obrigação para o contribuinte, para o pagador de imposto. Está com Vossas Excelências a responsabilidade de ajustar o texto para cumprir a promessa que foi feita, e que não seja uma reforma tributária que, daqui a pouco, tenha de ser reformada e, ao contrário do que se pretendia, venha complicar a vida do pagador do imposto, com interferência na economia, na atração de investimentos e no emprego — disse a especialista.
Em contraste com essas críticas, Marcos Flores, auditor fiscal Receita Federal, argumentou que a vinculação da geração de crédito ao pagamento na etapa anterior retira do sistema uma complexidade que existia na hora de apurar os créditos e, consequentemente, evita muitos casos de disputas na justiça.
— Isso exclui possibilidades enormes de litígio. Não adianta litigar para aquele que quer apenas procrastinar, porque ele não vai dar crédito para a etapa seguinte. Para dar crédito, ele tem de recolher. E se ele não recolher? Não tem crédito. Pode litigar? Pode, mas a procrastinação não faz mais sentido. Não dá mais para empurrar com a barriga — explicou.
O procurador-geral adjunto tributário, Moisés de Sousa Carvalho Pereira, elencou vantagens do modelo que vincula o "creditamento" ao pagamento. Para ele, o modelo incentiva o pagamento dos tributos, afasta a inadimplência e reduz as fraudes.
— Então, vejam, essa medida não favorece apenas o interesse de arrecadação. (...) Cada fraude praticada por um contribuinte que deveria pagar o tributo é um tributo que vai ser pago por todos nós. Essa é a realidade. É um custo arcado por toda a sociedade. E esse sistema do modelo novo tenta acabar com isso — argumentou o procurador.
Outra questão levantada pelos debatedores são os bens adquiridos para uso e consumo pessoal, que não geram direito a créditos de IBS E CBS. A regulamentação elenca entre esses bens joias, obras de arte, bebidas alcoólicas, bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos, desde que não utilizados na produção ou na atividade da empresa.
O texto deixa claro que não serão considerados bens e serviços de uso e consumo pessoal itens como equipamentos de proteção, uniformes, planos de saúde e vale alimentação, por exemplo. Para o diretor de Políticas Estratégicas e Legislativas da Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis (Fenacon), Diogo Chamun, é preciso ampliar essa lista com outros bens e serviços essenciais às atividades das empresas.
— O que a gente propõe? Que se avance um pouquinho mais — e não é muito — para considerar também despesas, gastos vinculados à operação da empresa, a parte de capacitação e os deslocamentos. Essas são despesas totalmente ligadas à questão da operação da empresa — defendeu.
Mas, para a consultora Melina Rocha, especialista em impostos sobre valor agregado, a restrição dos créditos para bens de uso e consumo é importante porque o texto da reforma aprovada no Brasil é muito amplo quando comparado ao de outros países com esse tipo de imposto. Ela deu exemplos de cálculos em que empresas seriam tributadas de maneiras muito diferentes, fornecendo vantagens aos empregados, como salário ou benefícios (carro, celular).
— É por isso que a gente tem de ter a restrição ao "creditamento" ou a tributação da saída desses bens e serviços para uso e consumo pessoal: para que essas duas pessoas sofram o mesmo tipo de tributação no final do mês, e assim seja respeitado o princípio da neutralidade — disse a consultora ao defender a manutenção dessas restrições no texto.
Outra reivindicação de mudanças na regulamentação diz respeito ao Simples Nacional, regime tributário que estabelece tratamento diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte. Isso porque, para conseguir transferir créditos integralmente, esses pequenos negócios devem abrir mão do regime simplificado. Participantes da audiência alertam para o risco de que as pequenas empresas sofram desvantagem competitiva caso não desistam do Simples.
De acordo com advogado tributarista Lucas Ribeiro, professor de Direito Tributário, empresas que hoje compram de fornecedores menores, incluídos no regime diferenciado, perderão grandes valores em créditos caso continuem comprando desses fornecedores.
— Os senhores acham realmente que essas empresas estão dispostas a perder? É lógico que não! Elas vão mudar de fornecedor ou vão exigir que essas empresas do Simples Nacional migrem de regime tributário — afirmou o advogado, que ressaltou as dificuldades que as pequenas empresas poderiam enfrentar ao passarem a operar com um sistema mais complexo.
Márcio Schuch Silveira, integrante do grupo de estudos para acompanhamento da Reforma Tributária do Conselho Federal de Contabilidade, defendeu a existência de um sistema híbrido para as microempresas e empresas de pequeno porte.
— Poderia haver uma opção híbrida para não impedir que elas sejam contratados por grandes empresas, porque aqui há um dano ao ambiente econômico, uma dificuldade para as pequenas empresas que a gente pode superar com um pequeno ajuste, com a criação desse crédito presumido, que na nossa leitura tem pouquíssimo impacto em termos de arrecadação dos tributos — argumentou o representante do CFC.
Durante a audiência, a senadora Margareth Buzetti (PSD-MT) defendeu alterações no texto para que as empresas de reforma de pneus não sejam prejudicadas com as novas regras.
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