Esporte Bento Olímpica
O argentino que mudou o patamar do Farrapos
Com perfil estudioso e apaixonado pela modalidade, Javier Cardozo foi o responsável por elevar o nível de competitividade do alviverde no cenário nacional do rugby.
08/09/2023 20h07 Atualizada há 2 anos
Por: Kevin Sganzerla Fonte: NB Notícias
Foto: Kévin Sganzerla

Final de jogo no Estádio da Montanha. É entoado o grito de guerra: “jogamos com garra, doamos nosso sangue, somos os Farrapos”, e logo após o grupo se reúne para ouvir atentamente a palavra do técnico Javier Cardozo. Entre ajustes, melhorias e elogios, a motivação é sempre direcionada para o jogo seguinte. Um “terceiro tempo” digno para comemorar e aproveitar, brindando a vitória com os seus atletas e com os adversários, pois o rugby é isso. Mas, no dia posterior, volta-se o foco nos estudos para o próximo desafio. 

“O que você espera para o próximo jogo, Javier?”. A primeira expressão é de um largo sorriso no rosto. O que realmente lhe impulsiona é o desafio, é o jogo subsequente, é fazer mais com esse escudo, e isso não é por acaso. “Estou hoje, na verdade, vivendo meu sonho, trabalho com o que amo”, pondera Javier Cardozo. É justamente essa paixão que o técnico alviverde tem pelo rugby que fez alavancar o patamar do Farrapos a nível nacional, levando o clube de Bento Gonçalves a dois vice-campeonatos brasileiros. 

Além de dois vices brasileiros, Javier Cardozo manteve a hegemonia do Farrapos no Estado, que já dura 13 anos / Foto: Kévin Sganzerla

Esse argentino, nascido em San Miguel de Tucumán, cidade onde foi declarada a Independência da Argentina, em 1816, começou a jogar rugby aos 8 anos de idade, influenciado por um dos seus irmãos, Pablo Cardozo. A sua primeira experiência com o esporte foi no clube onde atuava Pablo, o Club Natación y Gimnasia. Os seus colegas descobriram que Javier havia começado a jogar e logo o chamaram para um outro clube, o Los Tarcos Rugby Club, o qual o técnico argentino é fanático até hoje. 

Na Argentina, a realidade do rugby é outra. A modalidade é um dos esportes mais populares do país, cuja seleção, os Pumas, será uma das representantes na Copa do Mundo de Rugby de 2024, com grandes chances de chegar até as fases finais. No clube onde Javier atuou, para chegar ao time principal, a concorrência é gigantesca. 

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“É diferente que aqui, pois tem muita gente. Só no meu clube tem três a quatro vezes mais atletas que todo Rio Grande do Sul. Como a competição é tão grande dentro do clube, o objetivo sempre é jogar no primeiro time, isso que a gente busca. Imagina que você tem que passar por uns 200 a 300 atletas para jogar no primeiro time, é um negócio difícil”, relata Javier. 

O técnico do Farrapos iniciou sua trajetória na categoria infantil e, posteriormente, ingressou para a juvenil. Com apenas 18 anos, Javier começou a jogar na reserva do primeiro time, o chamado time “intermediário”. Com 19 anos, estreou no time principal do Los Tarcos. “Joguei entre uma a duas temporadas. Tive algumas lesões também, me machuquei bastante, lá o nível é muito pesado, o contato é complicado e é difícil manter a regularidade”, relata. 

A vinda para o Brasil

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Após algumas experiências em outros países, Javier Cardozo retornou ao Los Tarcos. Em 2013, o argentino foi convidado por um colega de faculdade para visitar Balneário Camboriú e participar de um torneio de Sevens. As boas atuações chamaram a atenção de clubes no Brasil, que começaram a convidá-lo a fazer parte do elenco, a exemplo do Desterro-SC, do SPAC-SP e do próprio Farrapos, por meio do ex-atleta Leonardo Scopel. 

Javier aceitou o convite de Scopel e chegou ao Farrapos em 2014, quando o uruguaio Carlitos Baldassari ainda treinava o clube. Após a saída de Carlitos e do seu sucessor, Mario Oliva, o Colo, que ficou apenas uma temporada no clube, Javier Cardozo recebeu o convite para comandar a equipe alviverde. 

Javier chegou a se aposentar dos gramados, mas logo voltou e segue atuando dentro das quatro linhas / Foto: Kévin Sganzerla

“O clube teve uma transição grande com a saída de Carlitos e Colo, que tiveram grande importância para o clube, e com essa importância gerou um vazio grande. Na época o Coghetto trabalhava comigo nas categorias de base, ele também saiu, e o clube ficou numa situação de incerteza. Já estava familiarizado com o grupo, já conhecia como eles trabalhavam, o que eles buscavam e, para mim, foi muito fácil ser treinador deles. Nem considero trabalho, faço por diversão”, comenta. 

Ainda como atleta, Javier previa dar sequência em sua carreira como staff, mas não esperava que assumisse tal função tão cedo. “Sempre me esforcei muito para tentar jogar bem, mas sempre me esforcei muito para entender rugby, porque tinha conhecimento que, se às vezes não sabia executar alguma coisa na parte prática, ia conseguir ajudar a outra pessoa a se desenvolver e ter as melhores oportunidades. Sempre tive a ideia de que quando chegasse ao fim a carreira de jogador, começaria a fazer carreira como treinador. Foi isso que aconteceu, só que aconteceu muito cedo, mais cedo que imaginava, porque comecei em 2016 e com 29 anos”, comenta. 

Foto: Kévin Sganzerla

Mas está enganado quem acredita que Javier Cardozo pendurou as chuteiras. Até então, apesar de direcionar os seus esforços na função de treinador, o argentino segue vestindo a camisa alviverde também dentro das quatro linhas. 

As questões culturais em relação à população gaúcha e o fato de ser parecido e estar próximo da Argentina foram alguns dos motivos que levaram Javier Cardozo a optar pelo Farrapos e, sobretudo, permanecer no Brasil. Hoje, seja em San Miguel de Tucumán, visitando sua família e seu ex-clube, seja em Bento Gonçalves, comandando o Farrapos, Javier Cardozo se sente em casa. 

“Não sei quantos clubes fariam o que peço para eles fazerem. Sei que posso pedir, pois sei que eles querem mesmo. A essência culturalmente do gaúcho e do pessoal de Bento Gonçalves, em específico, foi determinante e que me levou a fazer essa escolha”, pondera. 

Se há alguma dúvida da paixão pelo argentino pelo Farrapos, basta dar uma olhadinha no álbum de casamento de Javier com sua esposa, Lourdes Pucci Cardozo / Foto: Ivete Hunhoff

Uma trajetória vitoriosa

Os números falam por si. Desde que chegou ao Farrapos, o time alviverde se desacostumou a perder. Levando em consideração somente o Campeonato Brasileiro de Rugby XV, foram 57 partidas disputadas sob o comando de Javier Cardozo e apenas 16 derrotas sofridas em três anos. Logo em seu segundo ano como treinador, o argentino levou o clube a sua primeira decisão de Campeonato Brasileiro, em 2017. No ano seguinte, o clube chegou novamente na final. Em ambas as ocasiões, o alviverde se sagrou vice-campeão. Nas últimas cinco edições, o time de Bento Gonçalves terminou entre os quatro melhores times do Brasil.

Hoje, além da hegemonia no Rio Grande do Sul, o Farrapos se tornou referência no sul do país, sendo uma das poucas equipes a fazer frente aos clubes paulistas, que são a grande força do rugby brasileiro. “Quando cheguei aqui lembro que tínhamos muita dificuldade de ganhar de times de São Paulo. Hoje somos referência no Estado e tentamos nos manter como referência aqui no sul. Buscamos nos tornar referência a nível nacional, e quando conseguirmos ser referência nacional não vamos parar por aí, vamos tentar ser referência sul-americana”, ressalta Javier, que complementa:

“Quando paramos de tentar crescer é um momento que o clube corre perigo de perder atletas, de perder oportunidades, as coisas podem começar a cair e sabemos como é difícil levantar. Pessoalmente sempre falo para o clube que o melhor treinador não existe, é uma utopia, mas assim como trabalho para o meu crescimento pessoal, tento o tempo todo que o clube venha junto, que esteja atualizado com as últimas coisas que estou me capacitando e adquirindo e assim falamos na mesma língua aqui”, destaca. 

Foto: Kévin Sganzerla

Por isso, Javier Cardozo busca, em seus discursos, motivar o seu grupo para buscar o desempenho máximo de cada atleta e no grupo como um todo. Com a sua dedicação extra campo, por meio do estudo do adversário e de novas estratégias, do aperfeiçoamento de treinamentos e de questões táticas dentro do estilo de jogo proposto, o treinador visa, dentro das limitações do clube, tornar o Farrapos cada vez maior. 

“Não é simplesmente jogar rugby, e sim entender o jogo, ter compreensão e fazer uma linha de pensamento que esteja presente desde as escolinhas até os caras que se aposentam”, salienta. 

Javier na gestão de grupo 

O técnico argentino já formou diversos atletas neste período em que esteve à frente da equipe, sendo muito deles convocados para a Seleção Brasileira. Eduardo Manosso Zanrosso, apesar de não ser da base alviverde, foi um dos profissionais em que Javier incentivou para se dedicar ao rugby. Hoje, Duda, como é chamado pelos colegas de equipe, faz parte do staff dos Curumins, a Seleção Brasileira de base. 

“Javier é meu padrinho no rugby, ele que me trouxe para o Farrapos. A gente tem uma boa convivência, às vezes a gente até não se aguenta de olhar na cara, mas é muito bom trabalhar com ele. É um cara que veio para o Brasil e elevou muito o nível do Farrapos de jogo como de clube também. Hoje o Farrapos está cada vez mais competitivo, crescendo em outras áreas, se reorganizando, e isso passa muito pelas mãos do Javi, que é nosso diretor técnico”, relata. 

Foto: Kévin Sganzerla

Duda pondera que muitos dos atletas que passaram pela pandemia junto com o clube e que permanecem competindo pelas cores alviverde se deve ao simples fato de Javier Cardozo estar à frente da equipe. 

“Ele elevou muito o nível do clube tecnicamente, taticamente, e todo mundo comprou isso dele. Muitos caras, inclusive, ainda continuam jogando porque confiam muito no Javi. É um cara fundamental para o clube. Desde que veio para o Brasil, ele elevou não só o nível do Farrapos, como também está ajudando a construir o rugby no cenário nacional”, exalta o jogador. 

Bruno Marques, que iniciou a jogar apenas em 2019, é uma das grandes promessas do Farrapos e que foi promovido ao elenco principal no ano passado. 

Para o jovem atleta, de 20 anos, a figura de Javier para ele e para os demais juvenis é muito importante, sobretudo pela confiança perpassada pelo treinador aos jogadores. “Ele foi bem importante, porque o Javi tem uma visão muito À frente, então ele vê nossos pontos fortes desde o Juvenil para que no adulto faça com que possamos usar como nossa fortaleza”, detalha Bruno, que complementa:

“É um cara bem sério em campo, então sempre passa bastante confiança, sempre está ali para apoiar a decisão tomada, dando certo ou não, sempre querendo ser campeão”, salienta. 

Foto: Kévin Sganzerla

O Rugby no Brasil 

A modalidade no Brasil não é considerada profissional, ou seja, ainda se trata de um esporte amador. Os jogadores do Farrapos, por exemplo, não ganham para atuar no clube. Pelo contrário, eles pagam uma mensalidade para fazer parte do time alviverde para auxiliar nos custos. Ou seja, se comparado a Argentina, o rugby ainda está dando os seus primeiros passos. 

A cultura do esporte é tratada de forma totalmente distinta na Argentina. No Los Tarcos, por exemplo, time o qual Javier Cardozo torce, muitos jogadores fazem do seu clube a sua casa. “A Argentina levou muitas décadas de trabalho de clubes, muito esforço voluntário, muito trabalho profissional. Quando se vai fomentando de dentro para fora isso gera um sentido de pertencimento na Argentina. O clube é a casa das pessoas. É muito mais que um jogo de rugby, é uma forma de vida que a gente escolhe, isso motiva as pessoas a treinar e melhorar para chegar ao time principal e para serem selecionados para a seleção nacional. Por isso o rugby argentino é inigualável”, relata. 

No ano passado, o Pumas ganhou pela primeira vez na história dos All Blacks na Nova Zelândia /Foto: John Davidson/Photosport

Conforme o treinador, no Brasil falta justamente esse sentimento de pertencimento. Sobretudo, Javier afirma que as ações para tornar o esporte mais popular e desenvolvido no país devem ser realizadas aos poucos e de forma constante. “Estive bastante tempo comprometido com Confederação Brasileira de Rugby (CBRu) e com projetos de desenvolvimento e, em algum momento, com o alto rendimento também. Às vezes acho que as pessoas no Brasil têm muito entusiasmo e aquele entusiasmo leva a tomar decisões muito mais rápido”, opina Javier, que complementa:

“Precisamos ter paciência para chegar ao resultado e ao produto final. Já vai começar a aparecer, pois temos jogadores muito aptos, grandes treinadores, mas a palavra paciência e consistência são muito importantes. Se você tem esse sentimento de pertencimento é tudo muito fácil. Se temos clubes com 200 atletas ativos, o negócio vai rápido. Agora se você está em 30 ou 20 atletas e você não tem competições estaduais, não tem competições juvenis, é um vazio que se cria. Não temos aqui algo que é sustentável, a base da pirâmide está muito pouco estável”, pondera. 

Uma das medidas citadas por Javier é se espelhar no modelo de rugby europeu, fomentando, sobretudo, o rugby escolar, com os clubes gerando as suas próprias ligas escolares. Desta forma, cada clube poderá fomentar a modalidade dentro da comunidade na qual está inserido e, ao mesmo tempo, formar futuros atletas para o clube e para o rugby brasileiro. 

Um sonho realizado

No Farrapos, Javier Cardozo realizou o seu sonho profissional: ser um treinador de rugby. Algum objetivo além do já cumprido? O treinador explica: “Se tem uma coisa que o rugby me ensinou é não colocar muitos objetivos finais. Não sou uma pessoa de colocar objetivos finais e sim pensar muito no processo, no dia a dia, não deixar escapar nada, e que não seja uma corrida para fazer uma coisa só”, ressalta. 

Foto: Kévin Sganzerla

No Brasil, apesar de o esporte ser amador e ainda estar engatinhando, Javier Cardozo faz do rugby o seu estilo de vida, visando formar atletas para o esporte e, por meio dos valores da modalidade, como integridade, paixão, solidariedade, disciplina e respeito, cidadãos de bem para Bento Gonçalves. 

Um sonho que, apesar de estar realizado, segue em constante aprofundamento e intensidade para vivenciar cada desafio pela frente, visando o crescimento pessoal e coletivo do clube. “Tenho apoio da minha família, considero que passinho a passinho vou melhorando e vou sendo um treinador melhor, mais efetivo e mais funcional para o clube, isso que me dá um retorno emocional, que me deixa muito mais motivado trabalhar”, destaca. 

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