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Visibilidade lésbica: quando a ida ao ginecologista pode ser um trauma

Mulheres relatam despreparo do serviço de saúde para este atendimento

29/08/2023 às 07h25
Por: Marcelo Dargelio Fonte: Agência Brasil
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© Arte Agência Brasil
© Arte Agência Brasil

Ao menos umaem cada quatro mulheres lésbicas que entramem um consultório ginecológico no Brasilsofrealgum tipo de violência ou não recebeatendimento adequado. É o que aponta o I LesboCenso Nacional, da Liga Brasileira de Lésbicas e Associação Lésbica Feminista de Brasília– Coturno de Vênus. “Seja por um olhar, seja por alguma piada ou algo do tipo. Émuito triste e revoltante, porque se a gente vai no médico a gente quer ser é acolhida”, conta Jussiara Silva, de 39 anos, ao se recordar de praticamente todos os atendimentos ginecológicos que recebeudepois dese reconhecer uma mulher lésbica, aos 30 anos. “Desde então eu nunca encontrei uma ginecologista que eu me sentisse 100%”, se ressente,por não conseguirfazer um acompanhamento prolongado com um mesmo profissional.

Na data em que se celebra oDia Nacional da Visibilidade Lésbica (29 de agosto), relatos mostram quea violência não é exclusividade na atenção à saúde para mulheres adultas. Hoje, quem vê Mare Moreira, com 34 anos, se dividindo entre a tosa profissional de animais e os jogos de videogame, nem imagina que seus problemas nas idas ao médico começaram aos 13 anos. A primeira estranheza foi ser questionada sobre detalhes de sua vida sexual, mesmo ela afirmando que não tinha uma. Nessa época ela já sabia que não sentia atraçãopor meninos, mas nem chegou a falar disso. Ela saiu do consultório, ao lado da mãe, confusa, constrangida e com uma receita de anticoncepcional na mão.

“Um dos flagelos da nossa cultura é permitir que a/o profissional assuma que qualquer mulher buscando atenção ginecológica é uma mulher heterossexual, o que automaticamente a/o direciona a pensar que o sexo experienciado por aquela pessoa é o sexo ‘pênis-vagina’”, afirma a ginecologista e obstetra Letícia Nacle.

A análise de Letícia é confirmada porpesquisas. Um estudo publicado pelo The Journal of Medicine , em 2018, e que analisa a revelação da orientação sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres durante atendimento ginecológico, mostra que os profissionais não questionam sobre a orientação sexual das pacientes, fazem perguntas padrão, elaboradas para atender mulheres que se relacionam com homens, prescrevem sempre o uso de anticoncepcional, mesmo sem necessidade de contracepção, usam equipamentos inadequados durante exames ou não solicitam os exames necessários para o acompanhamento dessas mulheres.

Por ter menstruado pela primeira vez aos 9 anos, Isadora Costa, estudante de arquivologia, começou a ircedoao ginecologista.Aos 16, quando começou a compreender sua orientação sexual,se afastou dos consultórios.Por volta dos 18,buscou atendimento, queria fazer exames de rotina e saber se estava tudo bem com sua saúde sexual, já que àquela altura tinha uma vida sexual ativa. Mas os atendimentos eram sempre interrompidos quando ela contava que suas parceiras erammulheres.“Elas paravam ali, nunca nem passaram um papanicolau [exame para a detecção de câncer do colo de útero], sabe? Eu ouvi várias e várias vezes que sexo entre mulheres não é considerado um sexo de verdade, então, para elas eu continuava virgem. Apesar de não ser”, se indigna Isadora.Para conseguirter o seu direito defazer uma ultrassonografia transvaginalrespeitado, conta, foi precisodiscutir com a ginecologista e ameaçar ela mesma se penetrar com o equipamento do exame.

Diagnóstico

A demora emter um atendimento bem feito, com exames e atenção,retardou o diagnóstico da síndrome dos ovários policísticos (SOP), queIsadora só recebeuaos 25 anos, depois deanos defortes cólicas e pelos grossos pelos corpo. “É estúpido, é ridículo porque minha irmã nunca precisou passar por isso, minhas primas também sempre fizeram os exames delas e eu ficava me perguntando se tinha algo errado comigo. Eu me senti lesada por uma vida inteira porque eu nasci homossexual”,afirma Isadora.

Mariana Viegas, cineasta, também poderia ter tido um diagnóstico precoce de um cisto grave no ovário. Mas só conseguiu isso no ano passado, apesar de frequentar consultórios ginecológicos desde a adolescência. Mas em vezde um atendimento adequado, ela contaquerecebeuuma série de questionamentos preconceituosos ao revelar a uma das médicas que se relacionava mulheres.

“Ela questionou que drogas eu usava, eu disse que nenhuma. Ela insistiu e eu reafirmei que não usava nada. Então a médica disse que sabia que “nesse meio” rolava muitas drogas. Ela questionou também com quantas parceiras eu me relacionava. Eu disse que estava namorando há mais de um ano. Então ela me passou diversosexames de ISTs (infeções sexualmente transmissíveis) porque, segundo ela “com a homossexualidade vem a promiscuidade, vem o uso de drogas””, relembraMariana.

“Eu fiquei tão chocada que eu não consegui reagir, as palavras (da médica) ficavam rondando na minha cabeça, ficava aquilo ecoando”.Depois dessa experiência, Mariana só conseguiu voltar ao ginecologista dois anos depois, ao retornar para sua cidade natal. Hoje ela faz acompanhamento na cidade em que mora e relata ter encontrado uma “médica ótima, muito cuidadosa, muito atenciosa, muito gentil e muito acolhedora”.

Atualmente, encontrar uma médica acolhedora é o desejo da maquiadora Janaína Oliveira, de 28 anos. Segundo ela, foi necessário mentir e dizer que já tinha feito sexo com um homem, para que lhe fosse solicitado um exame preventivo do câncer de colo de útero.

“Já tive mais de uma experiência de ser negada a guia de exame preventivo, por ser considerada virgem pelo olhar médico, por eu nunca ter me relacionado com homens, e mesmo eu dizendo que eu precisava sim, pois me relaciono com mulheres e a penetração acontece”, conta Janaína.

De acordo com o ILesboCenso Nacional , feito pela Liga Brasileira de Lésbicas e Associação Lésbica Feminista de Brasília– Coturno de Vênus, publicado em 2022, 24,98% das mulheres lésbicas se sentiram discriminadas e/ou violentadas em um atendimento ginecológico por conta de sua orientação sexual.

Violências

“São poucas as pacientes que não trazem relatos infelizes ou até mesmo traumáticos em consultas com ginecologista. As experiências variam desde a invisibilidade da orientação sexual até discursos claramente lesbofóbicos ou realização de exames ginecológicos inapropriados e incongruentes com a vivência e contexto daquela mulher. É comum escutar relatos de uso de espéculos (ou bicos-de-pato) de tamanhos M ou G para essas pacientes, o que torna o exame extremamente desconfortável ou até doloroso. Existem espéculos P e PP que seriam muito mais adequados”, garante a ginecologista Letícia Nacle.

Mas as agressões vão além da orientação sexual.Racismo e gordofobia são relatos comuns nos consultórios. Mare Moreira ouviu de uma ginecologista que deveria “tomar alguma coisa para emagrecer e que assim eu teria uma vida sexual de verdade”, querendo ligar o fato de ela ser gorda ao de só se relacionar com mulheres. Isadora Costa também teve o mesmo problema, uma das profissionais disse que as dores fortes eram resultado do tamanho do corpo dela. “Você sente cólicas porque está gorda, porque você não se alimenta bem”, disse a médica, sem perguntar sobre a alimentação da paciente

Isadora também vivenciou outra agressão. “Senti muito a questão do elitismo. Esse elitismo médico de quem te olha decimaa baixo. É umdesconforto muito grande além da lesbofobia, além da gordofobia. Eu me senti muito diminuída, que não deveria estar ali procurando aquele serviço”, conta.

Qualificação dos profissionais

De acordo com a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, publicada em 2011, os profissionais da área da saúde devem ser capacitados para o atendimento adequado da população LGBTQIAPN+. O Ministério da Saúde afirma que tem trabalhado no âmbito da educação permanente, identificando necessidades e capacitando profissionais de saúde. Um exemplo é o curso “Enfrentamento ao estigma e discriminação de populações em situação de vulnerabilidade nos serviços de saúde”, fruto do Acordo de Cooperação Técnica/ Ministério da Saúde nº 1/2022, que também prevê a revisão da Política Nacional de Saúde Integral LGBT.

Já na formação universitária, a ginecologista Letícia Nacle avalia que o ambiente ainda é “muito conservador” para se discutir essas questões.A médica se formou em 2019 e relata que nunca recebeu nenhum tipo de instrução formal na graduação sobre especificidades no cuidado em relação à saúde e mulheres lésbicas ou de qualquer pessoada comunidadeLGBTIAPN+. “Infelizmente o MEC ainda não contempla a temática da diversidade sexual e de gênero em nenhuma graduação da área da saúde”, menciona.

Derrubando mitos

Mas, de todas as falas médicas relacionadas à saúde das mulheres lésbicas o que é verdade e o que é mito, preconceito e desconhecimento? De acordocomo o Ministério da Saúde não há protocolo diferenciado para a coleta de exame citopatológicoem mulheres que fazem sexo com mulheres.Para a pasta, todas as mulheres de 25 a 64 anos, independente da orientação sexual e/ou como se relacionam, devem realizar o exame.

A médicaLetícia Nacledefende que além de seguir o protocolo médico, o profissional deve dialogarcom as pacientes, para queo cuidado prestadoseja alinhado com a realidade de cada uma.Ela explica que arealização de exames como ultrassom transvaginal ou coleta de prevenção geralmente são realizados em pacientes que já tiveram algum tipo de penetração. Mas a coleta também pode ser feita em uma paciente que tenhavida sexual ativa sem penetração, se ela se sentir confortável pra isso.E para essa definição uma relação de confiança é fundamental.

Outro mito é o de que lésbicas não devem se preocupar com as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). A ginecologista afirma que sim, lésbicas estão sujeitas a essas infecções, mas que hoje a prevenção acontece em forma de “redução de danos”, com orientações para que as mulheres lésbicas mantenham “as unhas sempre curtas e limpas, usem lubrificante e preservativos e evitem sexo oral ou penetrativo no período menstrual”, por exemplo. De acordo com ela, estas falas não levam em conta que a prevenção é dificultada porque “os principais métodos de proteção – para as ISTs - foram criados para o sexo pênis-vagina. Quando falamos sobre mulheres lésbicas cis, são poucas as opções. As calcinhas de látex são caras e de difícil acesso. Os métodos mais baratos e acessíveis são ‘artesanais’ e muitas vezes não são congruentes com a prática sexual lésbica”, enfatiza a médica.

“Eu sei que não é só comigo”

Os dados do Censo 2022, elaborado peloInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não traz informações sobre a orientação sexual dos brasileiros, então não é possível saber quantas são as mulheres lésbicas hoje no país.O Ministério da Saúde também não tem – facilmente – dados sobre quantas mulheres lésbicas foram ao ginecologista e fizeram exame de prevenção no último ano.Mas a expressão usada por Mariana Viegas para responder ao convite para esta reportagem diz muito sobre a comunidade lésbica “eu sei que não é só comigo”. E mesmo com a invisibilidadee violênciarelatada por todasas mulheres aqui ouvidas, elasseguem se amparandoe rasgando o preconceito. Seja na criação de conteúdos, como o caso da médica e mulher lésbica Letícia Nacle , seja dando seus relatos como Jussiara, Mare, Mariana,Janaínae Isadora.Avisibilidade é construídadiariamentee todas elas concordam que é preciso que osbrasileirosestudem mais, se conscientizem mais para que todasas mulheressejam respeitadas em suas particularidadesnos consultórios ou fora deles.

Mas caso isso não ocorra, o importante éque a mulher e vítima do preconceito – e suas violências -não se silenciem, ressalta Letícia Nacle. Denúncias de violência ginecológica podem ser feitaspelo Disque Saúde 136e também pelo Disque 100,que recebe denúncias de quaisquer violações de direitos humanos.

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