Em 1997, Bento Gonçalves conquistou o protagonismo gaúcho pela primeira vez. O resultado de um trabalho que iniciou na década de 1980 foi comemorado com casa cheia no Ginásio Municipal de Esportes. O time do Esportivo, comandado pelo português Francisco Ferreira e formado majoritariamente por atletas do município, alcançou o inédito título ao derrotar a Sogipa/Meridional, de Porto Alegre. A conquista, que engajou a comunidade bento-gonçalvense, mudaria para sempre o patamar do voleibol da cidade.
Com direito a torcida organizada e bloco carnavalesco no ginásio, o Esportivo/AABB/Sesi/Isabella/Carraro superou a equipe porto-alegrense por 3 sets a 1, no terceiro confronto da final, após arruinar a festa da Sogipa, em Porto Alegre, na segunda partida. Sob o comando do técnico Chico e do coordenador Clemente Mieznikowski, o Esportivo foi campeão com os seguintes atletas em quadra: Marcelo, Bosko, Ricardo, Cláudio, Rafael Dentinho, Juca, Cristiano, Renato, Juliano, Thiago, Júlio, Rogério Ponticelli, Diogo, Alex, Gustavo, Marcos, Dante e Giovani.
A caminhada até o título inédito:
O título estadual, no entanto, não foi conquistado somente pelo trabalho realizado em 1997. Muito antes, na década de 1980, entusiastas do voleibol começaram a fomentar e compartilhar a paixão pelo esporte em Bento. Um deles é o treinador português Francisco Ferreira, o qual desembarcou na cidade em 1983 e alavancou o voleibol, transformando o patamar da modalidade em Bento, do amador ao profissional, do estadual ao nível nacional.
Chico, como é conhecido popularmente, chegou em Bento Gonçalves para trabalhar na Agrotécnica (atualmente nomeada como Instituto Federal – IFRS). Na época, o salário de treinador não cobria todas as despesas para sobreviver da profissão. Com sua experiência no voleibol português e com passagem pelo Grêmio Náutico União, de Porto Alegre, ele decidiu formar um time adulto de voleibol no município.
Pela primeira vez Bento Gonçalves aparecia no mapa do voleibol gaúcho. A equipe disputou o estadual de voleibol de 1983 com o nome de Esportivo e com patrocínio da extinta empresa Barzenski. No ano seguinte, no entanto, não houve continuação da equipe. Chico, então, passou a treinar as equipes juvenis do clube, convidado por Juarez e Lilia Mombelli.
Porém, depois, o treinador saiu para comandar outros clubes. Ele voltou para treinar a equipe feminina em Bento ainda na década de 1980, no entanto, posteriormente, retornou a Portugal e só voltou para a Capital Brasileira do Vinho em 1996, após mais uma passagem pelo GN União. Ao retornar para a cidade, Chico liderou o projeto “2000” de voleibol para transformar o patamar do esporte na cidade.
O experiente treinador teve o auxílio – dentre as diversas pessoas, entre dirigentes, empresários e lideranças – do coordenador técnico e professor Clemente Mieznikowski, que também foi um dos entusiastas do voleibol na cidade. Entre as idas e vindas de Francisco para o comando do Esportivo, Clemente permanecia na cidade sob o comando das equipes juvenis, nas quais surgiu grande parte dos atletas que se sagraram campeões estaduais em 1997.
Clemente iniciou a sua trajetória no voleibol em 1978, trabalhando no Colégio Aparecida. No início da década de 1980, o professor passou a comandar o time Mirim do Esportivo. O seu ímpeto em ensinar voleibol aflorou ainda mais quando Bento Gonçalves foi sede do amistoso entre a Seleção Brasileira Masculina, de Bebeto de Freitas, e a Seleção da Bulgária.
“Tive a oportunidade de ir ao treino e fiquei acompanhando os treinos, a convite de Bebeto de Freitas, durante 15 dias. No penúltimo dia ele conversou comigo. Falei que tinha o sonho de desenvolver o vôlei e, naquele momento, ele me disse que era para eu trabalhar em Bento Gonçalves com muitos meninos, sem se preocupar somente com aqueles que tinham talento”, relata Clemente.
Energizado pelas palavras do ex-treinador da seleção brasileira, Clemente voltou o seu foco para a base e passou a treinar grupos no Esportivo, na Recriar e em Garibaldi. “Começamos com poucos, mas logo se tornaram muitos. Desenvolvemos muitos e permitimos que todos se sentissem capazes de jogar os estaduais”, afirma. Do trabalho com jovens garotos da cidade surgiu a base para a equipe de 1997.
Clemente e Francisco Ferreira se empenharam em formar uma equipe adulta para competir a nível estadual em 1996. “Montamos uma equipe, treinamos muito, tínhamos muitos jogadores jovens que tinham feito um trabalho de base muito bom, porém precisávamos ‘limar as arestas’ (tratar de detalhes)”, afirma Chico.
A montagem do grupo e os treinamentos:
Francisco cuidava da parte técnica, enquanto Clemente, com boa desenvoltura de relacionamentos, buscava apoiadores por meio de lideranças, empresários e pais dos atletas. No elenco, a equipe permaneceu formada por jovens oriundos da base do Esportivo, com o acréscimo de jogadores experientes.
“Trouxemos dois jogadores de Porto Alegre, o Rogério Ponticelli, que foi atleta do professor Clemente, e o Marcelo Bosko, vice-campeão do mundo pela Seleção Brasileira. O grupo foi formado pela gurizada que estava aqui, todos muito jovens, os quais tinham sido campeões infanto-juvenil”, relata Chico.
Fora das quatro linhas, Clemente se dedicou às questões estruturais e financeiras para colocar o Esportivo em quadra. “Pulverizamos a questão de patrocínios, com pouco dinheiro, mas com muita sabedoria. O Francisco cuidava da parte técnica e eu me dediquei à questão de estrutura e política, de relacionamento com os empresários e pais dos atletas, os quais foram muito importantes no processo”, destaca Clemente, que complementa:
“Foi se criando uma energia tão grande na sociedade e cresceu mais ainda no auge com os meninos de Bento Gonçalves, liderados pelo grande estrategista que foi Francisco Ferreira”, pondera.
Os treinos eram realizados das 22h à meia noite, uma vez que os atletas trabalhavam ou estudavam. “Teve muito sacrifício, muita dificuldade. No meu caso em específico estava recém-casado e morava em Porto Alegre. Todos os dias pegava o carro, ia para a Unisinos (São Leopoldo) pela manhã, estudava, ia até Bento, onde comandava as categorias de base do clube e, à noite, treinávamos, e depois retornava para a capital. Todos os dias essa era a minha rotina. Chegou um momento em que eu já sabia de cor o número de curvas do trajeto Bento-Porto Alegre”, conta o ex-atleta bento-gonçalvense e atual treinador no voleibol inglês, Rogério Ponticelli.
A Final:
O primeiro jogo da final diante da Sogipa, de Porto Alegre, ocorreu no ginásio do Sesi. Nos dias que antecederam a primeira decisão, o grupo do Esportivo se manteve focado. Francisco e Clemente estudaram minuciosamente o adversário para evitar surpresas em quadra. Mas algo não estava nos planos da equipe de Bento Gonçalves: a umidade.
“O primeiro jogo da final foi coisa de filme. Nós estávamos extremamente focados. No dia do jogo, o ginásio estava lotado, muito além da sua capacidade. Era uma noite fria lá fora, e o calor interno fez o ginásio literalmente suar. Criou-se uma umidade altíssima e não conseguíamos ficar em pé. Eles cogitaram em adiar a partida, mas tiveram a ideia de colocar breu no piso, o que dificultou para todos. Perdemos a concentração, o jogo virou uma bagunça”, relata Ponticelli.
O Esportivo foi superado por 3 sets a 1 em casa. Na segunda partida, o ginásio da Sogipa foi enfeitado com centenas de balões para receber mais uma partida decisiva da final. “Quando chegamos na Sogipa já tinha balões, palco tudo enfeitado”, explica Chico. “Entramos na quadra para o aquecimento e quando olhamos para o teto do ginásio o que a gente vê? Uma rede cheia de balões, tudo preparado para a comemoração”, complementa o ex-atleta.
O time de Bento Gonçalves arruinou a festa dos donos da casa com uma vitória por 3 sets a 2, o que levou a decisão pelo título para o terceiro jogo, novamente na Serra Gaúcha, desta vez no Ginásio Municipal de Esportes. “O ginásio estava lotado. Foi o momento mais importante para o voleibol de Bento naquela altura. Foi um marco para a cidade”, pondera o treinador português.
Com uma grande atuação em quadra, o Esportivo, empurrado pelos mais de 3 mil torcedores presentes, entre eles membros da torcida organizada Espírito Esportivo e do bloco carnavalesco União do Morro, superou a equipe porto-alegrense por 3 sets a 1, conquistando de forma inédita o título estadual. Na ocasião, desde 1987 um clube do interior do Estado não se sagrava campeão gaúcho.
“Do início ao fim impomos nosso jogo e ganhamos o tão esperado título de campeão estadual de voleibol. Eu lembro com emoção, porque sempre que ganhávamos costumava dizer ‘é bom ganhar'. Quando acabou o jogo, nós estávamos pulando dentro de quadra quando o falecido Carlos Manfroi, um grande torcedor que enlouquecia durante os jogos, vem na minha direção e me abraça muito forte. Ele olhou para mim e disse ‘é bom ganhar’. Lembro com muita emoção. E celebramos durante toda a madrugada”, relata Ponticelli.
O legado:
A temporada de 1997 transformou o patamar do voleibol de Bento Gonçalves. Além do estadual, o Esportivo também conquistou, no mesmo ano, o título da Copa RS. As conquistas e os bons resultados impulsionaram o clube a disputar pela primeira vez a Superliga, na temporada 1998/99, contando também com grande parte de atletas oriundos da base do clube.
Conforme Clemente, o título não aconteceu só em 1997. “Foi uma luta de muitos anos. Os meninos foram muito importantes, os pais dos atletas, os empresários, houve uma união da comunidade em todos os sentidos. O vôlei começou a ficar valorizado. Tudo coincidiu quando o Esportivo se sagrou campeão do estadual. Foram praticamente todos de Bento, atletas, comissão técnica, com a experiente de jogadores e de Francisco Ferreira, que tinha o conhecimento e se diferenciava de todos nós”, enaltece.
Mais do que campeões, Clemente salienta que o trabalho desenvolveu cidadãos de bem para a sociedade, os quais hoje atuam em diferentes áreas e que construíram suas trajetórias profissionais, sejam dentro ou fora de quadra.
“Dediquei 34 anos da minha vida ao voleibol, e estou convicto de que cada gota de suor valeu a pena. Mais do que equipes que fizeram história no estado, como aquela de 1997, agregamos pessoas e formamos cidadãos, que hoje contribuem com a nossa comunidade em diferentes áreas, como na saúde, educação e geração de empregos. Eles são o exemplo de que o maior legado do esporte, no final das contas, não são as conquistas e troféus, e sim valores como disciplina, persistência e cooperação, que levamos para a vida”, destaca.
Assim como Clemente, o técnico português também clarividência o seu orgulho na formação de uma equipe praticamente composta por atletas “pratas da casa”. “Sempre valorizei o pessoal local, tanto em 1983, que foi o primeiro time, como em 1987, que ganhamos as duas competições. O mais importante foi o trabalho que realizei com essas pessoas daqui, mostrando que eles têm tanta capacidade quanto atletas ‘de fora’”, comenta Chico, que conclui:
“Esse foi um dos mais importantes títulos para mostrar para a comunidade de Bento Gonçalves o quão importante é investir naquilo que você tem aqui. Você não vai conseguir resultados logo. É preciso ter persistência, resiliência, confiar nos jogadores e morar para a comunidade que é uma satisfação ver pessoas daqui representando Bento Gonçalves. Isso para mim foi o mais importante”, ressalta.
Para Ponticelli, o título estadual impulsionou o voleibol bento-gonçalvense a ser conhecido no âmbito estadual e nacional. “Ajudou muito para a concretização do nosso sonho, que era colocar Bento Gonçalves na Superliga.
Hoje, Rogério Ponticelli, um dos frutos do trabalho desempenhado por Clemente, revelado pela base do Esportivo, se tornou treinador de voleibol. No Bento Vôlei, é o treinador que mais dirigiu a equipe, fazendo parte da conquista da Liga Nacional. Além disso, auxiliou no surgimento do projeto Sacada Solidária, que já atendeu milhares de crianças no município.
Depois, treinou a seleção juvenil inglesa. Posteriormente, Ponticelli recebeu o convite para treinar a seleção adulta da Islândia, com a qual conquistou a inédita medalha de prata nos Jogos dos Pequenos Estados da Europa, além de uma vaga para uma das fases do Mundial de Voleibol, atuando contra seleções tradicionais como França, Alemanha e Turquia. Atualmente treina uma universidade de Londres que participa do campeonato nacional de voleibol.
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