A falta de inclusão de pessoas com deficiência no sistema de ensino brasileiro é um dos principais desafios enfrentados pelas escolas e pelo poder público. Em Bento Gonçalves, a realidade não é diferente. Por conta da ausência de monitores, cujos jovens com determinada deficiência têm direito por lei, muitas crianças estão deixando de frequentar a escola, acarretando em prejuízos na sua educação básica e essencial.
O caso de maior ocorrência se refere às crianças com autismo. Segundo dados obtidos junto à 16ª Coordenadoria Regional de Ensino (16ª CRE), há 16 crianças autistas matriculadas na rede estadual de educação. O número de monitores que trabalham no município, no entanto, é significativamente inferior em relação à demanda, que ainda conta com crianças com outros tipos de deficiência. Na rede municipal de ensino, o problema se repete.
Além disso, outro problema enfrentado é a falta de capacitação desses profissionais que lidam com crianças com deficiência. Apesar de serem casos isolados, as reclamações por parte de pais têm sido cada vez mais frequentes quanto à falta de preparação dos monitores.
É o caso do filho de Silvana Alves, Vicente Perlin, de 5 anos, o qual ficou sem ir à escola nas primeiras semanas de aula por conta da falta de monitores. No entanto, posteriormente, foi contratado um profissional para auxiliá-lo na escola, no entanto, a mãe foi pega de surpresa com um fato que ocorreu com o seu filho:
“Ele foi na escola em dois dias. Sempre me coloquei à disposição da escola e da profissional que foi atender ele. Na sexta, ele fugiu antes de eu chegar para ir no parquinho do lado da escola. Naquela tarde, ele havia feito um pouco de cocô na roupa. Na porta da escola, o Vicente teve uma crise que durou 40 minutos e não conseguia acalmá-lo. Quando vinha para casa, uma vizinha me chamou e me disse que tinha que me contar uma coisa que ela viu na pracinha. Ela me disse que essa pessoa falou para ele que ‘era só o que faltava ela ter que ficar limpando bunda de cria em plena sexta-feira de tarde’, entre outras palavras proferidas”, relata.
Assim que soube do fato, a mãe registrou em ata, na escola, e relatou o ocorrido junto à Secretaria Municipal de Educação (SMED). “Falei para a escola que não me sentia segura e nem à vontade em deixar o meu filho ali. O Vicente não sabe falar o que acontece. Pedi para que fosse providenciado outra pessoa para cuidar dele”, comenta.
Silvana denunciou o caso no Portal NB Notícias, por meio de um vídeo e, após a repercussão, a prefeitura disponibilizou uma orientadora da escola para atender o Vicente, porém provisoriamente. Segundo a mãe, o problema ainda não foi resolvido. “Precisamos de pessoas que sejam capacitadas para ficar com eles, pois se vai uma pessoa que não tem noção de como lidar com um autista, que não tem preparo nem conhecimento, não é culpa dessas pessoas, mas é culpa de quem coloca eles lá. Esse é o meu apelo”, explica.
Não foi a primeira vez que Silvana se deparou com dificuldades para incluir o seu filho em uma escola. Anteriormente, a mãe tentou colocá-lo em alguma escola particular do município, porém todas as instituições contatadas se recusaram a recebê-lo. “Sou uma mãe que representa muitas outras mães que passam por isso diariamente, e que estão vendo seus filhos serem excluídos da sociedade”, destaca a mãe.
Leis em mãos
Carregar consigo a lei por onde vão: essa é a realidade de muitas mães que buscam os direitos de inclusão dos seus filhos na educação. É o caso de Priscila Savian, mãe de Emerson Savian Silveira, de 15 anos, que possui paralisia cerebral e é cadeirante, a qual pleiteou com “unhas e dentes” os direitos do seu filho para que conseguisse transporte e frequentasse a escola.
Aluno da Escola Estadual Dona Isabel, Emerson teve prometido o seu retorno à escola em 2022 com um monitor, no entanto a promessa não foi cumprida. Dias antes de iniciar as aulas, a mãe recebeu uma mensagem que afirmava que o seu filho não poderia ser atendido na escola, porque não haviam contratado um monitor.
Porém, Priscila foi atrás dos direitos do seu filho e não aceitou a decisão da 16 CRE. “Contatei a escola e a Coordenadoria que se ele não fosse recebido na escola eu registraria um Boletim de Ocorrência dizendo que, devido a sua condição física, ele não riria ser recebido, pois para mim isso é discriminação”, relata.
Devido a sua atitude, a 16ª CRE voltou atrás da decisão e afirmou que o seu filho seria atendido. Porém um novo problema surgiu. “Naquela semana fui ao Ministério Público (MP) avisar que eu não tinha monitor e que havia recebido negativa de transporte escolar da prefeitura que, para mim, foi a maior surpresa, pois ele tinha transporte adaptado para ir para a escola CAIC”, explica a mãe.
Priscila buscou vans particulares para levá-lo à escola, mas nenhuma contava com elevador adaptado para cadeirante, ou não havia espaço no veículo. Conforme a mãe, a prefeitura informou que o convênio do Estado e a prefeitura servia somente para alunos do interior do município e alunos do ensino fundamental. “Fui atrás da 16ª CRE, da SMED, conversei com o ex-prefeito Guilherme Pasin, que me auxiliou conversando com as pessoas e, após reuniões com o MP, consegui o transporte cedido pela secretaria de educação”, comenta.
Ele é o primeiro aluno cadeirante que é transportado pelo município à escola. “Graças a minha atitude de dizer assim: deixem os outros colegas do Emerson em casa e mandem o meu para a escola. Se meu filho não pode ser acolhido por falta de monitor, deixem os outros alunos em casa e atendam o meu. Os direitos são iguais”, salienta.
Emerson frequenta a escola nas segundas, terças e quartas-feiras, quando há profissionais da instituição de ensino que conseguem atendê-lo. No entanto, até hoje, ele não conseguiu um monitor para cuidá-lo. “O monitor é muito importante no deslocamento, para levar ele ao banheiro e ajudá-lo na alimentação”, explica.
A mãe pondera que necessita andar com a lei impressa debaixo do braço para que os direitos do seu filho não sejam violados. “Para o meu filho a lei vai ser cumprida, de uma forma ou de outra. Digo para cada mãe que tenham coragem, não deixem seus filhos em casa, não é o correto, a escola tem que receber e a escola tem que buscar o monitor. A minha luta é antiga. Conversa nenhuma da CRE ou da SMED ia me passar a perna, porque tenho as leis impressas e carrego comigo”, destaca Priscila, que complementa:
“Pelo que se vê e se percebe hoje, a SMED não está respeitando os direitos das crianças, e o que a escola faz? Pede para os pais deixarem em casa os filhos. Porque nós pais de criança com deficiência temos que abrir mão do trabalho para ficar com o meu filho na escola? Isso é algo indignante, no meu ponto de vista”, conclui.
Inúmeros casos da falta de inclusão são relatados no município. A filha de Sabrina Storti, Maria Eduarda Storti Pacheco, de 9 anos, que é autista de grau leve e tem epilepsia e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), não frequenta a escola desde agosto de 2019.
Conforme a mãe, ela tem crises praticamente toda a semana. “A própria escola, juntamente com a 16ª CRE, sugeriu que ela não fosse para a escola por conta das crises, que às vezes ocorrem de duas a três vez por semana, e não consegui monitora para ela. O que acontecia: quando ela tinha crises, a escola entrava em contato comigo e eu tinha que sair do trabalho para buscar ela. Por conta disso não consegui mais trabalhar durante o dia. Até tentei trabalhar no período da madrugada numa empresa, mas não aguentei e já estava ficando doente”, explica.
Atualmente, a mãe leva a sua filha nas aulas de reforço. As atividades, tanto da professora da turma como do reforço são mandadas para a mãe trabalhar com Maria em casa. “Tentei vaga no CIEP, que fica próximo de casa, mas não consegui. Saiu uma vaga para ela na Escola Bento, no Centro. Quando fui fazer a matrícula e expliquei a situação, me passaram em contato com a 16ª CRE, que me pediu para continuar no colégio no bairro Aparecida, porque a escola Bento já tinha várias crianças com alguma deficiência”, relata.
No momento, Sabrina está desempregada e cuida integralmente de sua filha, a qual necessita de supervisão de um adulto por conta das crises. “Hoje ela está na quarta série. Critiquei muito a questão de o colégio passar ela de série, porque ela é uma criança que está muito atrasada nos estudos e recém aprendeu a escrever o primeiro nome dela. E para levá-la na escola estou tirando dinheiro de onde já nem tenho mais”, comenta a mãe, que complementa:
“Não são essas crianças especiais que têm que se adaptar à escola. É a escola, é o poder público que têm que adaptar elas, dar o suporte necessário que elas precisam, como monitoras. É um direito dessas crianças frequentar a escola”, conclama Sabrina.
A falta de monitores também afeta a filha de Priscila Moreira, Izadora Moreira, de 10 anos, que é autista. Conforme a mãe, ano após ano o problema se repete. “A escola cobra diagnóstico para que se tenha um monitor, e quando se tem todos os documentos inicia-se mais um ano e o profissional que te prometeram no ano anterior já não irá mais exercer aquele compromisso”, relata.
Priscila pondera que o autista necessita de rotina, tanto dentro de casa como na escola. Sem um monitor se torna impossibilitada a permanência de sua filha na instituição de ensino. “As aulas já iniciaram há quase dois meses e seu filho, ao invés de ter um avanço escola acaba retrocedendo. Ela está no 5º ano, mas não sabem nem ler e mal sabe escrever”, comenta.
Atualmente, Izadora vai à escola uma vez por semana, com o atendimento de uma professora de sala de recursos. No restante dos dias, os pais precisam abdicar de suas tarefas e trabalho para cuidá-la. A mãe relata que, muitas vezes, é taxada como “chata” por exigir o direito de sua filha junto à escola e aos órgãos competentes, como relata:
“Ser autista não é um defeito. Eles têm uma forma de olhar o mundo de forma muito melhor que nós mesmos. O mundo tem que ter mais empatia com o próximo e não rotular a família pelo motivo de ter um filho ‘especial”, que mal te recebem na escola, porque ‘lá vem a mãe chata, problemática’. Realmente o que relato aqui é o sentimento que tenho vivido, pois dói em mim, ainda mais que tive um diagnóstico tardio. Sempre procurei assistência para ela, nunca houve negligência quanto aos seus cuidados, sempre busquei profissionais que pudessem me ajudar”, destaca a mãe.
O que diz a SMED
Conforme a secretária municipal de educação, Adriane Zorzi, o número de alunos inclusos vem aumentando ano após ano, com diferentes deficiências e/ou transtornos. “após dois anos de pandemia, muitos alunos que necessitam de um olhar diferenciado realizarem sua inscrição e matrícula nas escolas da rede municipal, aumentando consideravelmente a demanda por profissionais de apoio”, explica.
De acordo com a secretária da pasta, as escolas contam com estrutura para receber alunos de todos os públicos e todos os anos são contratados profissionais de apoio através de empresas terceirizados, estágios remunerados ou por contratos temporários. No entanto, assim que findam os contratos, migram para outras áreas e funções, desta forma causando a ausência de profissionais.
“Os profissionais de apoio contratados contam com a supervisão e capacitação do NID – Núcleo de Inclusão e Diversidade, da SMED e apoio direto da equipe diretiva. Com o aumento da demanda, ainda buscamos alguns profissionais, que já estão em processo de contratação e, após, capacitação para a função. Como estes profissionais estão em início de carreira, e a maioria deles em etapa de estudos e graduação, assim que finalizam seus cursos, migram para outras funções”, relata.
A secretária salienta que a Escola Municipal de Ensino Fundamental Especial Caminhos do Aprender tem uma proposta de inclusão social divergente em relação ao restante das escolas municipais. “Essa instituição tem uma proposta de acolhimento de alguns alunos, auxiliando no desenvolvimento de habilidades específicas para que, sempre que possível, possibilite a inclusão do mesmo na escola regular. Aos profissionais desta escola são ofertadas formações específicas e grupos de estudos para que, juntos com a coordenação pedagógica, busquem as melhores alternativas para atender as necessidades específicas de cada educando”, pondera.
Falta profissionais para o cargo, diz 16ª CRE
Conforme a assessora pedagógica da 16ª Coordenadoria Estadual de Ensino, Rosane Aparecida Borge Machado, que responde à educação especial, a grande dificuldade enfrentada é ter o profissional para ser contratado para ocupar a função de monitor nas escolas.
Segundo a lei, crianças com autismo e que exigem uma pessoa para auxiliar na higiene, alimentação e locomoção têm direito a um monitor. No final de 2021, houve 11 alunos de casos graves na 16ª CRE que necessitavam de monitores, e a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) liberou a contratação.
“Ganhamos o monitor e fomos para o banco de dados. Lá, vamos supor, havia 20 profissionais, os quais os chamamos. Um não quis, o outro já está empregado, o outro verificou que o valor que o Estado está pagando por 40 horas e por ter que pagar os exames particulares não era viável o emprego para tal função. Muitos aceitaram, mas quando verificaram o tipo de comprometimento e responsabilidade desistiram no dia seguinte. Ou seja, zeramos o banco”, relata.
O principal motivo da desistência desses profissionais em assumir a função é o baixo salário, segundo a assessora pedagógica. “Estamos com a dificuldade de ter a pessoa, o profissional para ser contratado”, pondera.
Rosane esclarece que o monitor exerce uma função distinta do professor ou do profissional da sala de recurso. “Temos o monitor, que é para essas necessidades fora da sala de aula, no auxílio da higiene, alimentação, locomoção, e temos o professor que é responsável pela parte pedagógica. A grande atribuição desse monitor e dessa professora não é ficar ao lado deste aluno copiando para ele o que está no quadro, e sim ajudar a executar as atividades para criar uma independência para que ele consiga fazer em cima do potencial que ele pode”, explica.
A assessora relata que muitos pais questionam a coordenadoria de que seus filhos não estão acompanhando a turma. Conforme Rosane, o principal objetivo da escola e dos profissionais é ajudar na adaptação desse aluno para a realização das atividades. “Dependendo da deficiência, ele não vai acompanhar a turma. Nós estamos interessados e preocupados em fazer adaptação, socialização, que ele se sinta pertencido àquele ambiente, à escola, que ele se sinta acolhido antes mesmo do conteúdo”, pondera Rosane, que complementa:
“Não temos tudo que gostaríamos de oferecer que seria a felicidade total do profissional, atender na íntegra a legislação. Nós estamos atendendo com o que nós temos, mas o pouco que temos estamos tentando fazer o possível para atender com amor e com a realidade do aluno”, conclui.
Números
Em Bento Gonçalves, estão matriculados na rede estadual de ensino 271 crianças e adolescentes com necessidades especiais. Dessas, 197 estão no ensino fundamental. Dentre as necessidades mais encontradas estão baixa visão (15), deficiência física (10), deficiência intelectual (204) e autismo (16).