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Tragédia na Ponte dos Arcos: a fatídica tarde de 18 de janeiro de 1944

Queda de parte da estrutura durante a construção resultou em seis vidas perdidas e mais seis anos de espera pela retomada da obra que mudaria o cenário do transporte regional e estadual

24/04/2021 às 10h53 Atualizada em 20/04/2022 às 10h33
Por: Jorge Bronzato Jr.
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Tragédia na Ponte dos Arcos: a fatídica tarde de 18 de janeiro de 1944

Por Jorge Bronzato Jr.

Memória BG - Bento Gonçalves


O forte calor das 14h daquela terça-feira de verão não parecia, nem mesmo por sua incômoda e inevitável presença, anunciar a desgraça que se avizinhava. Com os temporais dos últimos dias, o Rio das Antas corre ainda mais volumoso, dividindo de forma feroz a paisagem serrana entre Bento Gonçalves e Veranópolis, cidades cravadas em meio aos montes da região nordeste do Rio Grande do Sul.

É 18 de janeiro de 1944.

O pinho ainda verde usado para compor o cimbre, a estrutura de madeira que rascunha a futura Ponte Ernesto Dornelles – que permitirá a tão sonhada ligação rodoviária entre os dois municípios –, estala perigosamente distante dos ouvidos dos operários, que retornam da parada de almoço em um justo clima de regozijo e certa moleza. Aos poucos, todos vão retomando seus lugares na obra, sem sequer imaginar que, para alguns deles, aquele seria o derradeiro momento em vida.

Depois de um forte estrondo, o pilar de número quatro, uma das colunas provisórias que sustentam o empreendimento, se desmancha e leva abaixo, além de todo o madeiramento que dava forma à Ponte dos Arcos, seis preciosas vidas: na tragédia, morrem instantaneamente os brasileiros Arlindo Minozzo, Paulo Cardoso Filho, Nicolau Garcia Duarte, Felisberto Domingo Cainelli, Oreste João Bin e o polonês Pedro Jermack.

Outros seis trabalhadores têm ferimentos graves: Vergílio  Busnello, Guilherme Girotto, Severo Marin, Sergio Ribeiro, Ernesto  Grinkowisky e Estácio Juskoski. Com lesões leves, Casemiro Jarasis, Celso Oliveira Cardoso e José Luduino Toson. Os feridos são atendidos nos hospitais Dr. Del Prete, em Veranópolis, e Bartholomeu Tacchini, em Bento.

A queda ocorreu em meio a um teste de carga realizado com pedras. No informativo 26-27, datado de junho de 1945 e no qual o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) faz uma resenha histórica do ocorrido desde o lançamento do edital, em 1942, o trabalho que antecedeu o incidente é detalhado. "Achava-se o segundo vão com carga completa, o primeiro sem carga, e os demais com o carregamento compreendido entre 1/2 e 2/3 da carga prevista, quando, às 14 horas do dia 18 de janeiro de 1944, deu-se a ruptura do cimbre, caindo o pilar n.º 4 e os vãos ns. 3 e 4, com tudo o que sobre eles estava, morrendo 6 operários e ferindo-se 7 outros. Tendo ficado seriamente abalado o resto da estrutura, às 20 horas do dia 19 tombaram o pilar n.º 3 e o vão n.º 2", narra o relato.

"A ruptura foi brusca, sem ter-se percebido anteriormente qualquer prenúncio. Desde que se iniciava o carregamento do cimbre, os operários que trabalhavam nesta operação bem como os que começaram a executar o contraventamento das hastes comprimidas, comentavam os estalidos frequentemente escutados na estrutura e comentavam que os mesmos aumentavam à medida que a carga crescia. Atribuiu-se, porém, isto ao ajustamento dos nós e ligações e acomodamento das diversas peças determinado pela carga", acrescenta o registro oficial.

>>> DETALHES MOSTRAM, APÓS O DESABAMENTO, AS PEDRAS UTILIZADAS NA PROVA DE CARGA (ACERVO DE VOLNEI PAULO BARBI)

Mau pressentimento

Mas, como não poderia ser diferente, um episódio desta magnitude também reserva algumas "lendas". Uma delas, trazida à tona no livro "A travessia", fruto da dissertação de mestrado de  Gilmar Antonio Detogni, publicada em 2006, revela o pressentimento de um funcionário. Ele era mudo e teria tentado impedir os colegas de subirem na obra, gesticulando repetidamente. "Foi assim: os trabalhadores foram almoçar e voltaram. Por que ela não caiu na hora que estavam almoçando? O fato é que esse mudo, quando eles voltaram do almoço para irem trabalhar, ele não queria que subissem na ponte. Talvez, ela já estivesse fazendo movimento", contou em 2005 a pesquisadora Zaira Galeazzi, que nascera em Veranópolis, mas, na época da entrevista para o trabalho acadêmico, residia em Nova Prata. Seu pai, Rogério Galeazzi, era o então prefeito de Alfredo Chaves (como era chamada Veranópolis).

Atrasos da empresa

Voltando aos registros oficiais, os documentos do Daer guardam, ainda, um detalhe anterior "curioso": uma troca de telegramas entre o órgão e a firma empreiteira, Dahne, Conceição & Cia, na qual o departamento cobra a entrega, por parte da contratada, dos dados e cálculos completos a respeito do projeto do cimbre, ao que a empresa respondeu, em 1º de dezembro de 1943, que estavam sendo providenciados. A construtora também informa que a previsão para início da concretagem dos arcos era 15 de janeiro de 1944.

Na mesma publicação, fica evidente que a companhia responsável pela obra não estava cumprindo com determinados compromissos junto ao Estado. "Verifica-se que os dados sobre os detalhes ainda não estavam ultimados 45 dias antes da data marcada para o início da concretagem, quando, obviamente, já estava terminada a construção do cimbre. Aliás, esses dados prometidos nunca foram entregues ao D.A.E.R. Em 18 de janeiro de 1944, o cimbre ruiu. O abalo que o colapso do cimbre produziu nos interessados e as cogitações consequentes fizeram ecoar certo tempo e, antes de terem sido resolvidos os problemas relacionados, foi a firma empreiteira encampada pelo Governo Federal em 2 de maio de 1944", diz o texto.

Entre as causas para o desastre, foram analisadas possíveis falhas na execução do cimbre, o molde que depois receberia o concreto e daria a forma definitiva à ponte. Esses erros, motivados pela ausência de cálculos mais precisos, poderiam ter provocado, por exemplo, distorções na absorção da força que recaía sobre os arcos e os pilares provisórios. A tudo isso, também somou-se o uso de madeira de pinho verde, menos resistente, o que teria contribuído para agravar a instabilidade do empreendimento.

Inquérito policial

Conduzido pelo delegado Floriano Nunes, o inquérito que investigou a tragédia tratou como sua principal causa justamente a baixa qualidade do madeiramento utilizado, que, como apontado em meio a quase trinta depoimentos, exigia constantes reforços na estrutura. Foi isso que o chefe de polícia ouviu do próprio mestre de obras, o austríaco Raimundo  Bramreiter, e o que o levou a considerar que houve imperícia por parte dos responsáveis pela construção.

"Quando em vez e em virtude de ceder a armação da ponte tinha que mandar  reforçá-la; que o declarante, há  muito tempo, sentia receio da falta de resistência da armação em virtude do peso que lhe vinha sendo posto, notando mesmo que a armação vinha se deformando, em virtude da  madeira não ser de lei e sim de pinho;  que os operários já manifestavam a impressão de que 'a ponte não dava' por não resistir o peso; que além da iniciativa do declarante o Dr. Pagh, engenheiro responsável, de nacionalidade dinamarquesa, recomendava, de quando em vez o reforço citado; que os estudantes de engenharia de São Paulo, quando aqui  estiveram, expressaram sua opinião que foi ouvida pelo declarante e segundo o qual o vão de número um, não resistiria; que o declarante já  ouviu  dos  operários de  que  os  mesmo  não  mais  querem trabalhar na ponte, levados pelo medo e em face do perigo que continua oferecendo o estado em que a mesma se encontra", disse o encarregado no inquérito, que também serviu de fonte para a pesquisa de Detogni e foi concluído um mês depois da queda.

Mesmo assim, pouco mais de um ano e meio depois, em setembro de 1945, a promotoria pública de Bento Gonçalves pediu o arquivamento do caso, por entender que, com base em conclusões técnicas, não havia responsabilidade criminal, culposa ou dolosa.

A perícia feita por uma comissão designada pelo Daer resultou em um parecer assinado pelo engenheiro e diretor técnico do órgão, Agnello Pereira da Silva, que levantou as seguintes considerações: "As circunstâncias ocorrentes na ponte do Rio das Antas têm uma analogia impressionante com o  desastre de Québec (em 1907). Até as apreensões dos operários e contramestres, anteriores ao acidente, verificaram-se nos dois casos, segundo fui informado. Não deixa de ser paradoxal o fato de que operários e contramestres, pessoas quase leigas no assunto, sintam o cedimento da estrutura, enquanto o técnico julga-a em segurança. Aqueles têm a sensação produzida por esforços reais (estalidos na madeira, peças  tensas, etc.), mas não previstos pelos conhecimentos teóricos do último, que são o seu melhor guia. O nosso ponto de vista pode resumir-se em dizer que atribuímos o desabamento da armação da ponte do Rio das Antas ao mesmo detalhe técnico, ainda muito obscuro e discutido, que ocasionou o acidente de Québec", ponderou.

Desde aquela inesquecível tarde de 1944, passariam mais seis anos, permeados por um clima de frustração e desânimo (e de retomada das barcas para cruzar o rio), até que a construção fosse reiniciada, em janeiro de 1950. A obra, agora, estava a cargo da filial brasileira da empreiteira dinamarquesa Christiani Nielsen, com um novo projeto elaborado  pelo engenheiro e professor Antônio Alves Noronha, do Rio de Janeiro, que era considerado uma das maiores autoridades em concreto armado do mundo.

Por questões de segurança, uma das mudanças empregadas no recomeço dos trabalhos foi a utilização de um cimbramento metálico. Outra medida fundamental foi a sondagem geológica mais profunda das extremidades dos arcos, para evitar que as fundações fossem feitas em um terreno instável. Assim, foi possível fixar estas pontas junto à rocha firme.

A PONTE DOS ARCOS QUE "NINGUÉM" CONHECEU
A ponte Ernesto Dornelles foi um marco da engenharia nacional. Além de atender a uma antiga demanda de quem diariamente dependia das balsas para fazer a travessia do Rio das Antas, a obra também se tornou um grande atrativo turístico, sendo, à época de sua construção, a terceira do mundo em arcos isolados e a primeira com arcos paralelos.

O que pouca gente sabe é que a proposta original da ponte era muito diferente da que acabou sendo executada. É o que mostram as imagens abaixo, nas quais se destacam a presença de cinco arcos contínuos, chamados de abóbadas.

>>> PROJETO ORIGINAL PREVIA QUATRO PILARES NO RIO E CINCO ARCOS CONTÍNUOS (ABÓBADAS) - FONTE: INFOMATIVO 26-27 DO DAER (1945)

Para compreender como se chegou ao desenho atual, reproduzimos as palavras do então diretor geral do Daer, Clovis Pestana, também no Boletim 26/27 do departamento, lançado em junho de 1945:

“Em 16 de fevereiro de 1942, publicou o DAER o edital de concorrência pública para a construção da ponte de concreto armado sobre o rio das Antas, na rodovia Buarque de Macedo, entre Bento Gonçalves e Alfredo Chaves. O projeto oficial era constituído por cinco arcos contínuos (abóbadas) de 45m cada um sobre pilares elásticos. Era de 225m o seu comprimento total. Tinha 7,20m de largura entre guarda-rodas. Foi calculada para a carga tipo de um rôlo compressor de 24 toneladas. Era do tipo de estrado superior.

No edital de concorrência permitiu-se a apresentação de variantes. Quatro firmas apresentaram propostas para a construção dessa ponte. A Comissão julgadora, designada pelo Sr. Eng. Diretor Geral, manifestou-se pela aceitação da proposta da firma José M. de Carvalho & Cia. Ltda., para execução do projeto oficial. Recusou essa Comissão todas as variantes apresentadas, inclusive a da firma Dahne, Conceição & Cia., em que o leito normal do rio era transposto por um arco único de 186m de vão livre.

O autor destas linhas, exercendo então o cargo de diretor técnico do DAER, divergiu do parecer da Comissão julgadora das propostas para construção da referida ponte e defendeu o ponto de vista de que devia ser aceita a variante “A” da firma Dahne, Conceição & Cia. pelos seguintes motivos:

1) A despesa do DAER seria certa, por se tratar de um preço global único, sem possibilidade de acréscimo, a não ser que fosse ultrapassada a cota máxima das enchentes conhecidas. As outras propostas eram por preço unitário. Como as obras extraordinárias, decorrentes de serviços não previstos, são inevitáveis, podia-se ter a certeza de que a proposta da firma Dahne, Conceição & Cia. para a sua variante A seria mais barata. Além disso, aceitando essa proposta, o DAER estava completamente livre de ter de pagar qualquer indenização por enchentes que, em tempos normais, são frequentes e torrenciais no vale do rio das Antas. Assim, sob o ponto de vista de responsabilidade financeira, a proposta mais vantajosa para o DAER era a variante “A” da firma Dahne, Conceição & Cia.

2) Em um vale profundo, de encostas escarpadas, as linhas da variante A se harmonizavam muito bem com a paisagem.

3) Pelas suas características excepcionais, essa ponte iria aumentar os atrativos turísticos da região.

4) Constituiria, pelas suas dificuldades de construção, um fator de aprimoramento da nossa técnica em concreto armado.

5) A firma propunha-se na revisão e execução do projeto a obedecer as Normas Brasileiras de Concreto e apresentava as mais completas provas de idoneidade técnica e financeira.

Esse ponto de vista foi aceito pelo Sr. Eng. Diretor Geral e pelo Conselho Rodoviário. Daí ter sido assinado, em 20 de outubro de 1943, o contrato com a firma Dahne, Conceição & Cia. para execução do seu projeto denominado variante A".

E na sua opinião: foi uma mudança para melhor? Ou o projeto original era mais bonito?

>>> RECORTE DO PROJETO ORIGINAL, MOSTRANDO COMO SERIAM OS ARCOS QUE, NESTE CASO, FICARIAM SOB O TABULEIRO DE RODAGEM - FONTE: INFOMATIVO 26-27 DO DAER (1945)

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