A tragédia foi filmada. Era 19 de março, uma manhã quente em Campo Bom, no Vale do Sinos. De repente, faltou ar. Não aquela brisa comum, mas o oxigênio puro, que chega em dutos até os pacientes. Vídeos mostram funcionários do hospital Lauro Reus correndo, tentando transferir doentes da ala de covid-19. Em vão. Morreram seis pessoas em sequência, que tinham sido entubadas com quadro grave em decorrência do coronavírus.
A história não sai da memória dos familiares, que buscam justiça. GZH foi atrás dos parentes das vítimas e ouviu relatos. Todos ressaltam que foram informados da morte horas depois delas ocorrerem. E que a administração evitava falar sobre a falta de fornecimento de oxigênio que ocorreu naquele dia.
A direção do hospital informa que há sindicância em curso, e que tem prestado todos os esforços no sentido de colaborar com as autoridades para apurar o que ocorreu. No dia 19 de março, a prefeitura de Campo Bom admitiu que “ocorreu instabilidade na rede central de distribuição de oxigênio do hospital” e que “colocou à disposição todo o auxílio possível para manter a oxigenação dos pacientes”.
No mesmo dia, a Secretaria Estadual da Saúde afirmou que “os óbitos teriam ocorrido devido a uma falha no sistema de distribuição de oxigênio, e não pela falta desse”. A Air Liquide, fornecedora de oxigênio do local, diz que atendeu prontamente os pedidos do hospital pelo restabelecimento do insumo e que “cabe à unidade de saúde gerir o seu próprio estoque”. O caso também é investigado na Polícia Civil e Ministério Público.
Confira a seguir o perfil de cada vítima.
Suraí Silva da Silva, 51 anos
Em 19 de março, familiares de Suraí Silva da Silva receberam um telefonema do hospital Lauro Reus, onde ele estava internado com covid-19. Era meio-dia e pediam a documentação do paciente. O filho primogênito, Carlos Silva, assegura que não falaram em morte. Carlos havia visto na TV, pouco antes, a confusão sobre oxigênio no hospital, mas não relacionou os fatos.
— Estava com o carro estragado e só consegui alguém para me levar lá depois das 13h. Só que o pai tinha falecido às 8h. Não merecia morrer assim — desabafa.
Nascido em Pelotas, Suraí era porteiro de empresa em Novo Hamburgo. É descrito pelos filhos como pessoa simples, tranquila e que sempre ajudou quem precisava. Tinha na neta, Melissa, uma companheira de brincadeiras. Os familiares dizem que Suraí era cuidadoso. Trabalhava de máscara, mas acreditam que, por ter contato com público, contraiu o vírus.
Começou a ter sintomas em 16 de fevereiro. Buscou auxílio em posto de saúde e foi mandado para casa.
— Disseram que iria passar. Mas começou a manifestar cansaço. Aí decidimos pedir internação, em 22 de fevereiro — diz Carlos.
No hospital, foi entubado. A última vez que os filhos o viram foi em videochamada, feita por psicóloga do hospital. Apesar de desacordado, os filhos acreditam que ele ouviu a voz deles. Suraí deixa a mulher, Taniamar, os filhos Carlos (30 anos), William (24), Nataniele (21) e Pedro Daniel (14), além da neta Melissa (10 meses).
Fernando Cora da Silva, 39 anos
Residente em Campo Bom, Cora (como era conhecido) era industriário na área de calçados. Momentaneamente, estava sem trabalhar, em decorrência de obesidade e diabetes. Foi infectado pelo coronavírus duas vezes. No segundo episódio, de forma fatal. Cora é descrito por familiares como um sujeito que era tranquilo, alguém fácil de gostar. Morava há 10 anos com a mulher, Cláudia, e ambos cuidavam do pai dele, Davenir, 72 anos, diz um irmão de Cora, Juliano.
Fernando Cora e dois de seus irmãos dedicavam a vida ao pai. Buscavam remédio, comida, o alegravam, conta Juliano. Davenir, também hospitalizado por covid-19, faleceu dois dias depois do filho. Aposentado, era considerado pelos médicos como um paciente em recuperação, mas teve parada cardíaca, descreve Juliano.
Já Cora, na segunda infecção por coronavírus, a mais grave, foi internado por 12 dias e logo, em decorrência da dificuldade para respirar, entubado. — No dia da morte do Cora, me ligaram. Não falaram que era morte, só soube depois. E tampouco disseram que a causa era falta de oxigênio. Estou sem chão. Tentando não tomar medicamento para os nervos, mas está difícil. Perder pai e irmão em dois dias... — lamenta Juliano.
Cora deixa a mulher, Cláudia, 48 anos, e os irmãos Paulo, 45, Alex, 42, Alexandre, 41, e Juliano, 36.
Zeli Maria Dias, 59 anos
Após três dias sem ter retorno por telefone a respeito da saúde de Zeli Maria Dias, familiares dela foram pessoalmente ao hospital Lauro Reus, onde estava internada, no dia 18. É o que relata o genro dela, Cláudio Vieira Lopes: — Nos disseram que ela tinha dado uma melhoradinha. Falaram até que iam tentar tirar o sedativo para ela acordar. Foi com espanto que, no outro dia, ligaram para dizer que dona Zeli morreu. Eram 13h, tinha morrido pelas 8h.
Natural de Coronel Bicaco, nas Missões, Zeli se mudou jovem para Campo Bom, onde trabalhava na indústria calçadista. Conforme familiares, estava sempre de bem com a vida. — Sempre trabalhou, sempre ajudou todo mundo — diz Lopes.
Ele diz que sua esposa, Joice, “está no chão, pois ela e a mãe eram grudadas”. O genro relata que familiares pediam para Zeli deixar de trabalhar, mas ela insistiu em continuar. Um dia, reclamou de cansaço e voltou para casa. Num posto de saúde, diagnosticaram covid-19 e infecção intestinal. Foi tratada com medicamentos, mas piorou, não conseguia respirar. Então a levaram ao hospital e acabou entubada. Ficou internada por cerca de duas semanas.
Lopes e Joice também tiveram covid-19. — Não conseguia respirar, mas depois me recuperei. Bem pior é a perda emocional com a morte da dona Zeli — revela.
Zeli deixa o esposo, Pedro Dias, dois filhos — Joice (33 anos) e Volnei (34) — e dois netos, Artur (5) e Bernardo (4), filhos de Joice.
Carmem de Fátima Liczbinski, 67 anos
Quando a cozinheira Carmem Liczbinski, moradora de Campo Bom, adoeceu de covid-19, as duas filhas largaram o serviço para cuidar da mãe. Andreia Liczbinski mora em São Sebastião do Caí e Edinéia, sua irmã, vive em Balneário Camboriú (SC).
Edinéia diz que a mãe era muito conhecida e querida por todos no bairro Operária. Carmem trabalhou anos em fábrica de calçado, depois passou a cozinhar em indústrias e na prefeitura. Agora, estava aposentada.
Após confirmar infecção por coronavírus num posto de saúde, Carmem foi medicada e voltou para casa. Dias depois, piorou e foi internada no hospital. Lá ficou cinco dias. Diante da falta de ar, foi logo entubada. Todos os dias as filhas ligavam. Em 18 de março, telefonaram às 19h e não conseguiram informação. Deixaram para a manhã seguinte. Às 10h, voltaram a ligar, e não conseguiram informação. Elas não tinham noção, mas a mãe já estava morta. Carmem faleceu por volta das 9h. Às 11h, foram chamadas ao hospital, ainda sem saber a causa.
— Já tinha acontecido a pane do oxigênio, mas a gente não sabia. Ligaram horas depois da morte. Só liguei os fatos ao deparar com a imprensa lá. Para nós, acabou nosso mundo ali — relata Edinéia.
Carmem, viúva há décadas, deixa as filhas Andreia (48 anos), André (37) e Edinéia (33).
Málsia Beatriz Mauser, 48 anos
Málsia Mauser trabalhava como diarista em Campo Bom e era considerada por todos uma pessoa otimista, trabalhadora, que levantava cedo e deitava tarde. — Era o ponto forte da nossa família, o que nos unia, corria para todos — diz a filha Tábata.
Málsia deu entrada em um pronto-atendimento em 24 de fevereiro, com sintomas gripais. Recebeu antitérmicos e foi recomendado repouso em casa. Em 3 de março, retornou ao posto. Continuava mal. Aí receitaram medicamentos contra a pneumonia. Três dias depois, foi internada no Lauro Reus, em leito clínico. Foi a última vez que familiares a viram. Tábata diz que a respiração estava ruim e ela foi para a UTI. A filha reclama de falta de informações no hospital: — Passados uns dias, imploramos, contatamos o prefeito, aí um médico plantonista deu notícia. Que a febre estava controlada e que o quadro era melhor, que provavelmente ao longo da semana seria retirada da entubação.
O que jamais aconteceu. Dia 17 de março, um médico falou que Málsia estava bem e provavelmente seria despertada no dia seguinte. Dois dias depois, familiares viram pela TV a confusão no hospital. — Não fomos avisados das mortes, embora tivessem cinco telefones nossos. Colocaram morte por covid-19, mas sabemos que foi falta de oxigênio — diz Tábata.
Málsia deixa os filhos Tábata (31 anos), Maike (26) e Pedro (25) e os netos Paloma, Yan, Taylon, Kawã e Maria Alice.
Vani Heloína Diesel, 66 anos
Funcionária aposentada do Banco do Brasil, Vani Diesel nunca se desligou da paixão pelo trabalho. O grupo de WhatsApp mais ativo que ela mantinha era dos ex-colegas de banco. Estudava alemão na Feevale, pela internet. — A mãe era muito alegre, parecia minha irmã. Ela que puxava a turma para passear. Não via a hora que terminasse a pandemia, para retomar a convivência com as amigas — diz a filha primogênita, Luciana.
Para evitar o vírus, recebia poucas visitas — até porque tinha hipertensão. Ia eventualmente ao banco e no mercado, descreve Luciana, que mora na casa ao lado de onde a mãe vivia. As duas tiveram covid-19. Luciana, com sintomas fracos. Vani, atingida de forma mais forte, com mal-estar desde 21 de fevereiro.
Vani pagou exame particular, foi a um pronto-atendimento e voltou para casa. Continuou mal, fez consulta médica por vídeo, que a encaminhou para internação no hospital Lauro Reus em 2 de março, em quarto clínico. Dia 6, recebeu máscara de oxigênio. Em seguida, foi entubada. Segundo a família, médicos avisaram, dia 13, que ela sairia da ventilação mecânica. — É inexplicável — desabafa Valdir, filho de Vani.
Foi com surpresa que souberam da morte da mãe e nunca falaram em falta de oxigênio, diz Luciana. Vani Heloína Diesel deixa a mãe, Cecília (98 anos), e os filhos Luciana (41) e Valdir (35).
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