Em 16 de abril de 1983, os holofotes estavam voltados para as gurias do Clube Esportivo. No Estádio Olímpico, o técnico Moacir Agatti comandou as atletas do alviazul de Bento Gonçalves na vitória pelo placar de 8 a 0 sobre o Rio Grande, em partida preliminar do confronto do Grêmio contra o São Paulo pela Taça Ouro. A goleada marcou o primeiro jogo oficial de futebol feminino brasileiro no Brasil após a sua regularização.
O jogo ganhou destaque na mídia nacional. Tamanha foi a representatividade do fato que, em junho daquele mesmo ano, imagens da partida foram utilizadas nas vinhetas da telenovela da Globo, “Guerra dos Sexos”. “Antes éramos invisíveis. Quase ninguém tinha conhecimento e não se falava muito de futebol feminino. A partir daquela partida em que as pessoas acompanharam, o futebol feminino teve um pouquinho mais de destaque”, comenta Márcia Taffarel, atleta do Esportivo que, posteriormente, participou da primeira Olimpíada na qual o futebol feminino foi incluído como modalidade.
A história até a liberação do jogo:
Até 1979, a prática do futebol feminino era proibida por lei no país. Moacir Agatti, técnico do Bento Atlético Futebol, insatisfeito com o descaso com o gênero feminino no esporte, viajou até o Rio de Janeiro para visitar a sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com a intenção de solicitar a liberação do futebol feminino. Com o apoio da Prefeitura de Bento Gonçalves e do seu amigo Angenor Ferrari, Moacir rumou à Cidade Maravilhosa como representante do Esportivo.
Naquela época, as atletas que integraram o grupo formado com a ajuda de Marlene Taffarel, mãe de Márcia Taffarel, a qual teve grande importância para o futebol feminino na época, vestiam a camisa alviazul, mas eram proibidas de atuar no Estádio da Montanha. O time, que encarava o forte preconceito na época, participava de competições amadoras regionais.
Para mudar o cenário, Moacir deu as caras na CBF. Era um momento conturbado para a entidade máxima do futebol. “Cheguei na CBF no dia que o presidente Giulite Coutinho estava em Brasília com o presidente da República João Figueiredo para ver se eles iam fazer a Copa do Mundo aqui. O Figueiredo disse não. Coutinho voltou de lá fora das ideias. Dentro da CBF, a sala de imprensa estava abarrotada de repórteres, era uma confusão dos diabos”, relata Agatti.
No departamento amador, lhe foi dito que, de acordo com o livro de regras da CBF, era proibido o futebol feminino. Agatti o convenceu que era possível, no entanto, regularizá-lo, e foi ao Conselho Nacional dos Desportos (CND) em busca do aval do governo.
Na época, o General César Montagna de Souza comandava a pasta. Agatti relata o diálogo: “Cheguei lá. Falei com esse homem e de lá ele me perguntou: ‘Bento Gonçalves, lá onde tem vinho, né?’ Eu confirmei. ‘Mas você trouxe o vinho?’. E eu: ‘tenho sim, senhor. Então ele me disse: ‘quando você trazer o vinho aqui eu preparo essa tua papelada para você passar na CBF para eles autorizarem”.
Porém havia um empecilho. Agatti não havia trazido nenhum vinho de Bento Gonçalves. “E agora, que eu não tinha levado o vinho? Comprei um vinho em um mercado de lá, tirei o rótulo, e levei o vinho para o homem. Ele reuniu capitão, coronel, um monte de pessoas, pegaram aquelas taças de cristal para experimentar o tal vinho. E eu ali aguentando firme. Abriram o vinho e foram tomando. Esse general César Montagna de Souza disse para o coronel e capitão: ‘vocês viram, olha aí, esse aqui que é vinho. Não são esses que a gente compra aqui. Tem que ser da fonte’. E eu firme”, explica Agatti gargalhando.
No fim, o General assinou a “papelada”. “Entrei na sala do Coutinho, na CBF. Ele me disse: ‘pelo menos alguma coisa boa que me acontece hoje. Vamos assinar isso daqui’. Ele leu, assinou e carimbou”. Era o início de diversos eventos dentro do CND e da própria CBF que culminou na regulamentação do futebol feminino no Brasil, com o auxílio da pressão dos tradicionais clubes brasileiros.
De volta ao Estado, Agatti visitou a FGF e revelou a surpresa. “Antes de sair me desafiaram: se eu conseguisse, o primeiro jogo oficial era meu. Naquele domingo tinha Grêmio e São Paulo, e colocaram nosso time para fazer a preliminar. Foi uma semana corrida. Ir para lá com o quê? Dinheiro não tinha, patrocinador não tinha. Fui falar com seu Moisés Michelon, da Isabela, e ele me deu o dinheiro para a viagem e para o lanche. Jogamos com a camiseta do Esportivo. Aquele jogo foi destaque do Fantástico”, destaca Agatti.
O espetáculo:
Esportivo versus Rio Grande. O alviazul, com as cores semelhantes as do Grêmio e o belo futebol, conquistou de cara a torcida tricolor, que vibrava a cada lance. As gurias de Bento Gonçalves, apesar da idade, entre 15 a 20 anos, encararam o desafio de frente em busca do feito histórico. “Todas encararam como um bom desafio. O Esportivo, naquele dia, teve a sorte de estar bem com o universo e conseguiu fazer um 8 a 0. Eu particularmente fui a destaque”, relata Claudete Anderle, conhecida popularmente como Kéti, que anotou três gols no confronto.
A brilhante atuação na partida rendeu elogios e até a comparação entre Kéti e o craque do Grêmio na época, Renato Portaluppi. “Compararam-me na época com o Renato, e até depois da partida eles vieram me entrevistar, eu e o Renato, pelo modo que eu jogava, por eu ser muito esquentadinha. Fui expulsa por sinal no final do jogo”, comenta Kéti.
O jogo de celebração rendeu um friozinho na barriga às atletas ao entrar no Olímpico para atuar pela primeira vez aos olhares de uma multidão de torcedores. “Sempre foi o sonho de cada jogadora que iniciou naquela época. Jogávamos no campo do Cristal, em campos do interior, pequenos, e esse foi o primeiro jogo que a gente disputou em um estádio lotado, com torcedores, preliminar de um grande jogo”, explica Márcia Taffarel, que complementa:
“Como eu era nova na época, eu tinha aquele frio na barriga, aquele nervosismo de jogar num estádio grande, mas ao mesmo tempo estávamos muito felizes e excitadas para jogar, alegres para poder fazer essa participação nesse jogo tão importante que vinha a marcar um início de uma fase muito legal que vivemos na nossa vida”, pondera.
Nos bastidores, o nervosismo tomava conta no início do confronto, porém, ao final da partida, a festa veio à tona, como relata Márcia. “No vestiário nós estávamos nervosas, mas muito concentradas. Estávamos uma apoiando a outra. As mais velhas nos acalmavam. Depois do resultado positivo foi só alegria. Estávamos muito felizes no ônibus voltando para Bento Gonçalves. Paramos num restaurante de café colonial e estávamos super felizes. As pessoas vinham e nos cumprimentavam pela vitória”, comenta.
O jogo a jogo:
A goleada começou aos 2 minutos, com Kéti. Depois, aos 12, ela deu o passe para Vânia fazer o segundo. Aos 35 minutos, Marilda, contra, fez o terceiro para o Esportivo. Na etapa derradeira, o alviazul permaneceu amplamente superior. Aos 5, Kéti e Vânia fizeram o seu segundo na partida, 5 a 0. Luci, contra, aumentou a vantagem. O sétimo gol foi novamente de Kéti, que gritou “tá lá” e deu uma cambalhota, para delírio do torcedor. Aos 23 minutos, Mimi completou a goleada de 8 a 0.
O Esportivo entrou em campo com Jacki; Kika (Ana), Rose, Bea (Marlene) e Alda; Inelva, Márcia Taffarel e Mimi; Kéti, Nelita e Vânia.
Kéti revela que a emoção em calçar as chuteiras e entrar pela primeira vez em um estádio lotado foi única, e guarda esse momento com carinho na lembrança. “Nada supera a emoção de tu entrar pela primeira vez, como mulher, calçando uma chuteira, subindo aquele túnel do Olímpico e ver aquele estádio cheio”, ressalta.
Para Márcia, o jogo foi um dos incentivos que a fez acreditar que podia fazer de sua paixão pelo futebol a sua profissão, sonho que foi concretizado posteriormente pela atleta. “Não tinha esse pensamento de encarar o futebol feminino como uma carreira. A partir desse jogo com certeza minha cabeça mudou e vi o futebol feminino como uma profissão que eu poderia seguir. Acho que isso que me motivou nesse jogo e que teve tanto significado para mim”, relata.
Além de Márcia Taffarel, a Kéti também chegou a ser convocada pela Seleção Brasileira na época, mas não integrou a equipe verde e amarela para ficar ao lado dos pais. Apesar disso, ela afirma não esconder o orgulho que tem por ter feito parte desta equipe e de suas colegas de equipe que chegaram longe, a exemplo da goleira Geni Gabrielli e de Márcia Taffarel, que defenderam a seleção. “Pelo tão pouco que o Esportivo deu de apoio para o futebol feminino naquela época, a Márcia é o espelho de que se você não tem apoio, mas continua sonhando você consegue, e a Márcia está onde está por causa disso”, comenta.
Moacir Agatti e Marlene Taffarel foram duas de diversas outras pessoas que conseguiram, mesmo com pouco apoio e pouco tempo de sobrevivência em Bento Gonçalves, colocar o Esportivo no protagonismo do futebol feminino, pelo menos em um dos históricos fatos que sucederam a liberação da modalidade no Brasil.
“Marlene Taffarel às vezes deixava de comer para que as atletas pudessem comer. Às vezes não tínhamos dinheiro, mas ela dava um jeito de levar uma grana para comprar uma água, alguma medicação. A dona Marlene sempre vai ficar na lembrança, sempre vai ter o meu imenso carinho. Tenho que dizer também que o Moacir foi um cara que lutou muito. Comigo sempre vi ele como um homem correto, sempre procurou ensinar o melhor”, destaca Kéti.
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