Um “crime” em Pelotas, outro em Bento Gonçalves. Uma taça destruída, um corte na cabeça e uma atuação de gala. Uma decisão que, após uma verdadeira epopeia, foi parar no Beira-Rio, em Porto Alegre. O time que marcou época, e construiu a tradição do Clube Esportivo Bento Gonçalves, edificou a conquista da Copa Governador do Estado em 1977, mas só conseguiu levantar a taça e colocar o nome do clube novamente no hall dos campeões em fevereiro de 1978, no primeiro jogo da temporada.
O grupo, que se sagrou campeão, contou com atletas que estamparam os seus nomes na centenária história do Esportivo. Muitos deles se enraizaram em Bento Gonçalves para a eternidade. Alguns ainda circulam pela Avenida Osvaldo Aranha, próximo ao Estádio da Montanha, a “velha” casa alviazul, antes azul e branca, hoje com suas cores indefinidas pelas pichações e pela pintura se deteriorando.
Localizada a poucos metros da antiga casa do Esportivo, a padaria Favaretto é um dos locais onde Leopoldo Benatti, o Raquete, de 68 anos, ex-lateral-esquerdo, direito, zagueiro, um legítimo defensor do alviazul, frequenta seguidamente, assim como outros ex-atletas do clube.
É nessa padaria, cujo Renato Portaluppi era funcionário na adolescência, que Raquete estufa o peito e fala orgulhosamente dos feitos do Esportivo daquela época. “Tínhamos um time aguerrido, um conjunto muito forte, um grupo muito fechado, unido. O Esportivo, onde nós íamos, os caras tinham um respeito muito grande”, salienta.
Raquete é o segundo jogador da história do Clube Esportivo que mais vestiu a camisa alviazul. Entre 1971 e 1984, o ex-jogador, que foi lançado ao futebol profissional pelo técnico Ênio Andrade, atuou em 434 partidas pelo clube, número impensável para um atleta que atua no interior na atual conjuntura do futebol gaúcho.
Ele não era a exceção. Muito pelo contrário, Raquete foi uma das provas que não se tratava de simples raízes. Elas eram profundas, muito firmes, e que perduram até hoje. Dentre todos esses jogos, o ex-jogador foi escalado como zagueiro para dar conta dos atacantes da tradicional equipe Xavante na final em 1977, no Beira-Rio.
A Copa Governador do Estado de 1977
A Copa Governador do Estado surgiu em 1970 para dar sobrevida aos clubes do interior, enquanto que a Dupla Grenal disputava o Campeonato Brasileiro. O Esportivo foi campeão logo em 1973, com Ênio Andrade como treinador, o qual, anos depois, se sagraria campeão brasileiro pelo Inter e pelo Grêmio.
No dia 26 de outubro de 1977, o leopoldense Laone Luz, aos 30 anos, fez a sua estreia como treinador no Esportivo, no primeiro jogo pela Copa Governador do Estado. Ele tinha um diferencial e tanto. Anteriormente, Laone era jogador e, ao mesmo tempo, preparador físico da equipe. “Eu parei de jogar no Esportivo em 1977. Eles me convidaram para treinar. Já contava com a amizade do grupo e já tinha o grupo na mão”, comenta.
Com sete vitórias, dois empates e apenas uma derrota, o Esportivo estava novamente classificado à final do torneio. Pela frente estava o Grêmio Esportivo Brasil, de Pelotas, da apaixonada e efervescente torcida xavante. Todos de férias, menos os finalistas.
O “crime” de Rubem
“Um canhoto nato”, como descreve Raquete. O ponteiro esquerdo Rubem Wojahn, que atuou no Esportivo entre 1975 e 1983, fez o “crime” no jogo de ida diante dos olhares de centenas de torcedores xavantes que, como de praxe, lotaram o Estádio Bento Freitas, em Pelotas.
O jogo foi marcado para uma segunda-feira, dia 12 de dezembro de 1977. Dois meses atrás, o Brasil havia conquistado a vaga para disputar a elite do futebol brasileiro sobre o próprio rival, o Pelotas.
Ao lado do lateral-esquerdo do Esportivo, Valdir Espinosa, falecido em 2020, o técnico Laone dissertou ao grupo, durante a preleção, de como o time deveria se comportar em campo naquele confronto. No Grêmio, Espinosa havia enfrentado o time xavante inúmeras vezes em Pelotas.
“Comentei que podíamos reverter a situação caso tivéssemos uma atuação firme e segura, principalmente no início do jogo. Tradicionalmente o Brasil vive pela força da torcida. Sempre, independente do adversário, eles saem marcando em cima, saem apertando”, explica.
Empurrado pela fanática torcida xavante, o Brasil pressionou o Esportivo nos primeiros minutos. Porém, os visitantes, bem indigestos pelos olhares do torcedor rubro-negro, conseguiram segurar o poderio ofensivo adversário.
O time da Serra Gaúcha não só freou a pressão do time da casa como também surpreendeu. Rubem, aos 18 minutos do segundo tempo, fez o gol que deu a vitória por 1 a 0 ao Esportivo, desta forma, garantindo a vantagem do empate no jogo de volta.
Laone Luz foi jogador, treinador, preparador físico e supervisor do Esportivo (Foto: Jornal Pioneiro)
Um causo Xavante:
Para o torcedor Xavante, o céu é o limite, e a paixão pelo clube não tem tamanho. Antônio Luiz Munhoso, fundador da Torcida Organizada Paixão Rubro Negra (PRN) e apaixonado pelo Grêmio Esportivo Brasil - mais precisamente louco pelo clube, é uma das provas que o amor pelo Xavante ultrapassa qualquer fronteira.
A sua primeira caravana foi em direção à Capital Nacional do Vinho para o jogo de volta da decisão. No entanto, percalços tornaram a excursão uma verdadeira aventura. Programados para viajar de Kombi, um grupo de seis torcedores, incluindo Munhoso, debaixo de um sol escaldante, aguardavam o motorista, que nunca apareceu. A decepção foi grande, mas os fanáticos não desistiram.
“Gritei: ‘Eu não vou voltar para casa! Vou a Bento Gonçalves nem que seja de carona!” Foi um alvoroço. Não deu tempo pra eu explicar que estava brincando. Todos me apoiaram imediatamente e eu, que era novato entre eles, fui abraçado, sacolejado, quase carregado nos braços”, relata Munhoso.
Eles se dividiram em dois grupos. Um deles conseguiu carona numa caçamba. Munhoso e outros dois xavantes arranjaram espaço num fusca azul cintilante, “Una chica uruguaia” de bom coração os levaram até Porto Alegre. “De fato, a sorte nos sorriu da maneira mais “linda” possível e chegamos a Porto Alegre. Uma despedida rápida. Gentilezas e agradecimentos, troca de cartões e nunca mais vimos aquele “anjo”, comenta. Eles chegaram a tempo para presenciar um jogo tão frenético quanto a viagem.
O ‘crime” de Osmar
O ex-atacante do Brasil, Osmar Lima, de 71 anos, atualmente coordenador técnico do time feminino do Grêmio, havia chegado recentemente no clube de Pelotas. E foi ele o responsável por dar o troco no Esportivo.
No jogo de volta, os nervos em Bento Gonçalves extrapolaram de vez. O Estádio da Montanha estava arrebatado de torcedores em uma quinta-feira, dia 15 de dezembro. A confiança pela vitória e pelo título era eloquente.
Entretanto, na etapa derradeira, Osmar, aos quatro minutos, cometeu o “crime”. “Lembro vagamente. A bola sobrou na área e bati com o pé esquerdo. O jogo era truncado. Quem fazia o gol ia ganhar, pois o campo era muito feio”, comenta.
Aos 20 minutos, o atacante Lambari, do Esportivo, e o zagueiro Sommer, do Brasil, foram expulsos. Os nervos estavam aflorados, dentro e fora de campo. O estopim foi logo depois.
Das inúmeras pedras arremessadas ao gramado, uma delas foi lançada do pavilhão social com uma parábola certeira no alvo: a cabeça do atacante Osmar. O motivo, porém, não foi só pelo gol. “Joguei oito anos no Caxias”, enfatiza o atacante do Brasil.
A rivalidade entre Esportivo e Caxias, o conclamado “Clássico da Polenta”, portanto, também estava presente na decisão. “Foi uma pedra que bateu, cortou a cabeça e sai do jogo. Na hora que bateu, tonteei, cortou e sangrou”, conta Osmar. Laone, com suas credenciais de 118 jogos no comando alviazul, resume de forma enfática o fato, com um tom conclusivo e de nostalgia: “a velha Montanha”.
Em pé: Espinosa, Carlão, Jânio, Ze, Raquete, e Dilvar. Agachados: Lambari, João Carlos, Valnil, Valdecir e Rúben
A taça virou bola
A vitória do Brasil por 1 a 0 no jogo de volta forçou uma partida de desempate, marcada para o domingo, dia 18 de dezembro, no Estádio Cristo Rei, em São Leopoldo. O presidente do Brasil na época, Dr. Cláudio Milton Cassal de Andrea, de 81 anos, relata que o local não contava com a segurança necessária e com condições para receber a decisão.
“O idealizador da decisão ser realizada no estádio do Aimoré, em campo neutro, foi do vice da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), Miguel Edson Alves, que garantiu que tinha vistoriado o estádio durante a semana. O que talvez não esperasse era o número de torcedores xavantes que se mobilizaram para acompanhar o clube”, ressalta Cláudio.
Era um domingo escaldante. De dentro do vestiário, o grupo do Esportivo observou a chegada do torcedor xavante que, em poucos minutos, pintou não só as arquibancadas, mas também o gramado de preto e vermelho. Uma verdadeira invasão rubro-negra.
O Brasil entrou em campo. O Esportivo, por sua vez, temendo a “saúde” dos atletas no meio de toda aquela confusão, permaneceu escondido. Devido às péssimas condições do estádio, os torcedores foram movidos de uma arquibancada para outra visando a segurança do jogo. Mas, no fim, confronto nenhum saiu. A decisão da arbitragem pelo cancelamento da partida, devido à falta de condições, provocou a ira do torcedor xavante que, em um ato de fúria, derrubou o alambrado do estádio.
Diante da postura do árbitro, o vice-presidente da FGF confirmou a transferência da final para o Estádio Santa Rosa, em Novo Hamburgo, para que fosse realizada no mesmo dia. “O mais grave é que não tinha sido feita uma solicitação à Brigada Militar para dar segurança. O árbitro se negou a começar o jogo”, salienta o ex-presidente do Brasil.
Alguns aficionados do Brasil chegaram antes mesmo que os ônibus dos clubes e da própria delegação da Federação. “Os torcedores estavam dentro do gramado. No meio de campo estavam a taça e as medalhas. Os torcedores do Brasil estavam brincando de jogar bola com a taça e estavam atirando as medalhas de um lado para outro”, relata o ex-treinador alviazul.
O jornalista Paulo Sant’Ana, que esteve presente na decisão, defendeu a torcida rubro-negra das acusações: “Chutar as taças e jogar longe as medalhas foi pouco. Eu nunca tinha visto uma desorganização igual”, disse na época, na RBS TV.
Daquele confronto nunca ocorrido em São Leopoldo, o torcedor Xavante Munhoso guarda consigo uma lembrança um tanto quanto inusitada: um tijolo da estrutura do Estádio Cristo Rei, que foi derrubada na ocasião.
Show de Adílson
A final foi concretizada só no dia 02 de fevereiro de 1978, no primeiro jogo da temporada. Esportivo e Brasil entraram em campo, no Estádio Beira-Rio, com a presença do Governador Sinval Guazzelli.
Apesar do torcedor xavante também ter comparecido em uma maioria esmagadora, a pressão foi limitada pela magnitude do Beira-Rio. O fator da torcida e da confusão ficou de lado, sobrando somente o futebol. “Foi só o futebol, e futebol o Esportivo era realmente melhor do que o Brasil. E o resultado comprova isso”, comenta Laone.
Arílson, um dos principais jogadores que passaram pelo Clube Esportivo
Antônio Fronza, de 64 anos, mais conhecido como Toninho Fronza, havia se recuperado de uma lesão e, de cara, foi titular na decisão. “O jogo foi tranquilo, lá e cá. Tivemos a sorte do Adílson estar inspirado. A vitória veio ao natural, sem muita reação do Brasil. Foi uma conquista maravilhosa depois de todas as confusões”, ressalta o ex-atleta, que foi o que mais vestiu a camisa do Esportivo na história do clube.
Adílson Benfica da Rosa, que faleceu em 2005, marcou a sua passagem pelo Esportivo. “Foi um dos melhores jogadores que passou por aqui. Um meia com uma categoria extraordinária, inteligente, era habilidoso. Sabia fazer gols, batia bem na bola. Era um cara que não falava muito, mas tinha uma liderança no silêncio”, comenta Raquete.
Inspirado, Adílson balançou as redes por três vezes no Beira-Rio. A vitória por 3 a 0 decretou a conquista do bicampeonato da Copa Governador do Estado que, posteriormente, seria novamente conquistada pelo Esportivo em 1980, tornando-o o maior campeão da competição.
O último jogo, o de desempate, da Copa Governador do Estado de 1977, que foi, ao mesmo tempo, o primeiro jogo de 1978, resultou em uma das diversas conquistas que constituíram a fase áurea do alviazul. O título sobre a forte equipe do Brasil foi uma das provas que tornou o Esportivo, da década de 1970 em diante, um clube temido e respeitado no futebol gaúcho e brasileiro.
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