Os dois políticos negros em meio aos 76 candidatos eleitos no pleito municipal de 2016 são os mesmos dois e únicos negros que ocuparam cargos eletivos em mais de 70 anos no conjunto de seis municípios da Serra Gaúcha: Bento Gonçalves, Garibaldi, Carlos Barbosa, Santa Tereza, Monte Belo do Sul e Pinto Bandeira. Essa é uma das inúmeras evidências da sub-representação do negro na política brasileira, que está longe de ser exclusividade do cenário apresentado pelas cidades serranas.
Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), apenas 7,6% dos candidatos eleitos no Rio Grande do Sul em 2016, seja no Executivo ou no Legislativo, eram negros. Nas eleições de 2018, em todo o país, embora fossem 47,6% do total de candidaturas, 27,9% dos concorrentes negros foram eleitos. Em decisão histórica do TSE, a aprovação do financiamento proporcional para candidatos negros promete aumentar a porcentagem de representatividade de pardos e pretos na política e colaborar com o combate ao racismo. A regra já é válida para as eleições de 2020.
Confira detalhes de como vai funcionar a regra
Na última eleição da Câmara dos Deputados, estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito, mencionado pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso, verificou que as mulheres negras, que representavam 12,9% das candidatas, receberam 6,7% dos recursos. Já as candidatas brancas, que eram 18,1%, receberam o financiamento de forma proporcional, ou seja, 18,1%. A mesma assimetria ocorreu nas candidaturas masculinas.
A ONG Educafro — Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes —fez parte da consulta ao TSE em prol da medida. “Primeiro devemos entender que essa é uma medida de combate ao racismo institucional. Historicamente, os partidos destinaram mais verbas aos candidatos brancos do que aos negros. A divisão de recursos partidários é também, muitas vezes, a escolha de quem será ou não eleito”, analisa o coordenador do coletivo político Engaja Negritude da Educafro, Davi D’Ávila Souza.
Evidências da sub-representação no âmbito local
De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado, a população negra no Brasil é majoritária, correspondendo a 55,8% do total do índice demográfico do país. Embora maioria, a participação de pardos e pretos nas mais diversas instâncias da sociedade é significativamente minoritária.
Tal afirmação é evidenciada na pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgada em 2019 pelo IBGE. Por exemplo, apenas 29,9% de negros ocupam cargos gerenciais de empresas, segundo dados do estudo. Na política não é diferente.
Em um levantamento realizado junto aos arquivos históricos e às assessorias das prefeituras e câmaras de vereadores dos seis municípios da Serra Gaúcha, constatou-se que somente dois negros alcançaram cargos eletivos na história eleitoral da região.
(Gráfico: Guilherme Pech/Beta Redação)
Em Carlos Barbosa, Valmor da Rocha (PP), de 63 anos, foi o primeiro negro a ocupar um cargo no Legislativo do município, que teve sua primeira legislatura em 1960. Já Monte Belo do Sul, cidade emancipada em 1992, também teve nas últimas eleições municipais o primeiro candidato negro eleito — o único que estava disputando o pleito. O bento-gonçalvense Silvio Cesca (MDB), de 37 anos, se elegeu e atualmente é o presidente da Câmara de Vereadores da cidade.
Nos demais municípios — Bento Gonçalves, que ultrapassa a marca de 120 mil habitantes, Garibaldi, Santa Tereza e Pinto Bandeira — não há registros de políticos negros ocupando cargos eletivos, seja no Executivo ou no Legislativo.
Nas eleições de 2016 foram 30 candidaturas negras registradas, correspondendo a 7% do total de candidatos na soma dos seis municípios. No Rio Grande do Sul, o total de candidatos negros no pleito municipal correspondeu a apenas 9,4% do total de candidaturas.
“Não é favor, é inclusão”, afirma coordenador do Movimento Negro Raízes
A decisão do financiamento proporcional para candidatos negros foi comemorada pelos movimentos antirracistas, que pleiteiam em suas pautas uma maior presença do negro na política brasileira. O Movimento Negro Raízes, que atua principalmente na Serra Gaúcha, e que já foi contemplado por dois anos consecutivos com o Prêmio Zumbi dos Palmares pela Assembleia Legislativa do Estado, trabalha em prol da mudança da realidade referente à escassez da representatividade do negro na política da região.
O coordenador do movimento, Marcus Flávio Dutra Ribeiro, diz que é preciso um número maior de negros na política para que pautas como racismo e desigualdade estejam cada vez mais presentes nas discussões. “Sempre levamos pautas, procuramos abrir espaços, mas isso tudo é o que chamamos ‘por fora’. Faço a reflexão de que precisamos ter um mecanismo de dentro para fora. Hoje temos no sentido inverso, mas o de dentro para fora é que realmente vai dar mais estrutura e ser mais eficiente”, comenta.
De acordo com Marcus, a medida surge como uma importante e crucial ferramenta de inclusão, além de reforçar o combate às desigualdades que permeiam a sociedade. “Esse levantamento é a resposta pronta. Se essa determinação é importante? Claro que é importante. Ou colocamos goela abaixo, como fez o ministro, senão não se cria nada. Não é favor, é inclusão social, pois quando resgatamos toda a história do negro, só falamos de dor, de exclusão”, pondera.
As preocupações que surgem com o advento da medida
Com a deliberação, as questões levantadas, sobretudo por especialistas, geram debates de como será fiscalizada e quais serão os regramentos para a efetividade da determinação.
“É preciso fiscalizar para ver se os partidos vão fazer. As elites partidárias são majoritariamente brancas, e a lei força que essas elites devam repartir recursos que são valiosíssimos para eles com negros e pessoas com menor poder. Você está mexendo em uma coisa que é a principal fonte de eleição”, analisa o cientista político do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) João Feres Júnior.
O coordenador do Movimento Negro Raízes, Marcus, teme que, se a medida por adiada para as eleições de 2022, o processo pode percorrer um caminho contrário a sua efetivação. “Não sei para onde vai essa discussão, tenho dúvidas a respeito. É liminar, mas me preocupa que se essa discussão acabar indo para 2022, isso acabe se perdendo no meio do caminho”, opina.
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